segunda-feira, 30 de maio de 2011

O Fogo Interior - Parte 3

Os blocos de madeira continuavam alinhados no parapeito. Eram uns vinte, de cores e tamanhos diferentes, e Mestre Kieran acabara de separá-los em dois grupos.

- Vocês estão no mesmo nível – disse. – Tentem juntos. Não se preocupem um com o outro.

Tarja assentiu e voltou a estender a mão sobre sua parte dos blocos. Razek fez o mesmo, fitando a pedra no anel de poder que usava desde a última estação. Era uma turmalina negra, que nenhum outro aprendiz tinha escolhido, mas que o atraíra por ser uma das que mais fortaleciam a vontade. Era nisso, afinal, que residia o poder.

Fechando os olhos, ele inspirou três vezes, bem devagar. Ao abri-los, seus dedos já formigavam, carregados de uma energia que se apressou a direcionar para os blocos. Na mesma hora, alguns deles tremeram, e o mais próximo chegou a dar um pequeno salto. Mas isso foi tudo.

Razek apertou a boca e tentou pela segunda vez. Em vão: o resultado foi ainda mais medíocre. Frustrado, ele passou a mão pela testa, molhada de suor apesar do frio, e olhou para os blocos de Tarja. Alguns tinham se virado sobre a face lateral, mas fora isso estavam imóveis. A moça continuava com a mão estendida, porém agora em silêncio, e a atenção de Mestre Kieran se voltava toda para ela.

Ele pensava que Razek havia desistido.

Como uma labareda, a energia subiu pelo corpo do rapaz, da base da coluna até o centro do peito, fazendo disparar o coração. Sem refletir, ele tornou a estender a mão, pronunciando uma palavra de poder – e no instante seguinte não apenas seus blocos, mas também os de Tarja eram arremessados como pedras por todos os cantos da sala.

- Ai! – fez Lear, atingido no queixo. Sua voz se perdeu em meio às exclamações dos demais. Aquilo fora totalmente inesperado. O próprio Razek não o previra e estava ali, sem saber o que fazer com as mãos. Foi preciso que Mestre Kieran lhe dissesse.

- É melhor recolher os blocos. – O tom seco, neutro, uma reprovação sem dúvida. – E depois vá sentar. Você pode tentar de novo, Tarja. Sem interferência dessa vez.

Do chão, onde já estava agachado pegando os blocos, Razek o encarou indignado. Não tinha como negar o que fizera, mas fora sem querer, o mestre não podia estar pensando o contrário. Não Mestre Kieran, que sempre tinha sido tão justo.

- Olhe, eu achei esse aqui – disse Gwyll, aproximando-se com um dos blocos maiores. Tarja se abaixara também para pegar os que tinham caído por perto. As mãos de ambos se encontraram sobre o parapeito, mãos claras e hábeis com a mesma ametista em seus anéis.

Razek teve vontade de morrer.

Dali em diante a aula perdeu o interesse para ele. Nem a segunda tentativa de Tarja – só um pouco melhor que a anterior – nem as proezas do Terceiro Círculo o fizeram sequer erguer as sobrancelhas. Só voltou a prestar atenção quando Kieran, depois dos comentários de praxe, lembrou a todos que mais tarde haveria um treino de combate mágico.

- Será no pátio principal da Ala Branca. Aberto a todos – disse, mas logo fez uma ressalva: - Como espectadores, é claro.

Ergueu o canto da boca, daquele jeito que Tarja apelidara de Sorriso do Mal. Razek desviou os olhos, irritado com aquilo - e mais ainda com as risadinhas do grupo de combate. Eram uns oito aprendizes, todos do Terceiro Círculo, que tinham em comum o ser mais aptos para a Magia do Pensamento do que para a da Forma. O outro requisito era gostar de lutar, já que o combate se dava ao mesmo tempo em dois níveis: não só o da Magia, mas também o do Metal. Os que se encaixavam nesse perfil tinham aulas com um mestre de armas na cidade e exercícios mágicos específicos, orientados por Mestre Kieran, que passava a ser o principal responsável por seu aprendizado. A julgar pelo que diziam, tinham o dobro do trabalho dos outros, mas Razek teria dado tudo para se juntar a eles.

Mesmo que alguns dos idiotas estivessem no grupo.

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Não desanime! A história só chegou ao meio. Tome fôlego e siga para a Parte 4.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

O Fogo Interior - Parte 2

Razek era um garoto cheio de raiva. Fora essa a conclusão do Preste de sua aldeia, que tentara aconselhá-lo a pedido da família; era essa a imagem de si mesmo que tinha trazido para o Castelo das Águias, onde chegara há quatro anos, depois que um mago viajante enxergou nele traços do Dom. Foi uma surpresa para todos e uma alegria para seus pais, incapazes de lidar com tanta revolta mal contida no corpo do menino de doze anos. Para piorar, nem era um corpo forte, a menos que se comparasse apenas com os outros meio-elfos. Diante dos garotos humanos era uma lástima, um magricela que não ganhava uma única briga, e as zombarias e humilhações faziam sua vida negra.

- Deixe eles para lá – aconselhava seu irmão, quando o via chorar de raiva. – Eles são fortes agora, mas vão envelhecer mais rápido e morrer antes da gente. Veja o avô, com quase cem anos de idade e ainda à frente da oficina. Vamos ficar como ele, enquanto os outros vão estar enrugados e trêmulos. Não é uma boa vingança?

- Não é, não. Para ser boa tinha que ser agora – dizia Razek.

Pensando dessa forma, era natural que encarasse a ida para a Escola de Artes Mágicas não apenas como uma oportunidade, mas também como uma forma de dar o troco aos desafetos de infância. Ansiava pelo dia em que voltaria à aldeia, poderoso em seu manto de estrelas, para ser temido e admirado por todos. É claro que boa parte desses planos eram pura criancice. As ilusões acerca da Magia se dissiparam nas primeiras luas, quando compreendeu que só progrediria através de muito estudo e trabalho duro. Quanto aos mantos vistosos, eram apenas para os idiotas. À exceção dos trajes rituais, magos de verdade usavam roupas simples, como as de Mestre Kieran. Era a ele, agora, que Razek procurava impressionar.

E, além do professor – bom, talvez houvesse mais alguém.

Razek espiou sobre a lombada do livro aberto à sua frente. Como de costume, Tarja sentara na mesa seguinte em companhia de dois imbecis, Lear de Madrath e Gwyll, um meio-elfo de cabelos claros e sorriso fácil. Os três estavam com as cabeças unidas e liam o mesmo livro, cochichando em voz baixa, embora Mestre Kieran tivesse dito várias vezes que não gostava daquilo. Desta vez, porém, ele parecia não se importar. Talvez nem percebesse, ocupado em acompanhar os esforços de Nardus com os blocos de madeira. Tanta concentração e mal haviam se movido algumas polegadas. Como ele podia esperar mudar de Círculo no solstício de inverno?

- Bom. – A voz de Mestre Kieran parecia sair de uma caverna. – Não adianta forçar por hoje, Nardus, mas amanhã quero que treine antes do desjejum. Talvez ajude estar com a cabeça vazia. Sua vez, Tarja.

A moça se levantou, indo até a janela em cujo peitoral estavam os blocos de madeira. Era a única fonte de luz no aposento, um salão no segundo andar da torre que chamavam “da Magia” justamente por ser a sala de aula de Finn e Kieran. Como toda a Ala Azul, suas paredes eram de pedra, aumentando ainda mais o frio que entrava pela janela. Alguns aprendizes estavam encolhidos, e a própria Tarja esfregou as mãos antes de erguê-las suavemente sobre os blocos.

Kieran inclinou a cabeça, indicando que podia começar. Do seu lugar, Razek pôde ver os lábios da amiga se movendo, murmurando alguma fórmula destinada a concentrar sua energia. Gwyll e Lear tinham parado de falar e acompanhavam o exercício, mas a garota na mesa de trás não se conteve e se inclinou para sussurrar no ouvido de Razek:

- Eu acho que ela não consegue.

- Cala essa boca – foi a resposta imediata. Soou mais alta do que gostaria, atraindo o olhar de vários colegas e – para seu azar – o do próprio Kieran, que se voltou bruscamente e o encarou com o cenho franzido.

- Venha cá, você também – disse ele. Razek abriu a boca, pronto para protestar, mas alguma coisa na expressão do mestre o fez mudar de ideia. De cabeça baixa, envergonhado até os ossos, ele caminhou para a janela, sentindo o olhar dos companheiros em suas costas. Queimava como fogo, assim como a raiva dentro dele.

Por que não ficara de boca fechada?

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Continua na Parte 3!

sexta-feira, 20 de maio de 2011

O Fogo Interior - Parte 1

- Meninas e meninos, atenção! Mestre Finn irá dar os anúncios do dia. Parem um pouco de falar e escutem, por favor!

A voz aguda do intendente ecoou pelo salão, calando mestres e aprendizes que conversavam embrulhados em seus mantos. Eram seis horas de uma manhã de inverno – não tão fria, é claro, como se estivessem no Norte, mas mesmo assim bem mais do que estavam acostumados. Por conta disso a lareira estava acesa, as portas fechadas para conservar o calor, e a cozinha servira porções de mingau acompanhando o desjejum de pão, frutas e queijo de cabra. Estava quente, e os primeiros a se servir tiveram que esperar, soprando o vapor das colheres e das tigelas. Todos menos Razek, que nunca ouvia conselhos. Seu mau-humor matinal crescera com a queimadura no céu da boca. Por que cargas d’água tinham servido aquela porcaria fervendo?

- Está melhor? – perguntou Tarja, a seu lado. Era uma moça esguia, meio-elfa como ele e um ano mais velha; tinham sido muito próximos, mas nos últimos tempos Razek se afastara, porque Tarja passara a viver colada no pessoal do Terceiro Círculo. Eram uns idiotas, sempre humilhando os aprendizes do Segundo a pretexto de ajudá-los com os trabalhos. O pior era ouvir Mestre Finn elogiá-los por isso, ampliando aquele sorriso que parecia pregado em seu rosto.

Se bem que hoje ele não estava sorrindo.

- Bom dia – começou, depois de um leve pigarro. – Hoje está frio, mas é improvável que chova. Para o grupo que está trabalhando com Mestre Tomas, ele avisa que a madeira chegou e que os aguarda, a partir da oitava hora, no galpão da Ala Violeta. E ontem à noite recebemos notícias de Mestra Thalia, que visita a família em Erchedel. Ela informa que tudo está bem e que estará de volta em dez dias. Até lá, receio que o Primeiro Círculo precise continuar me tolerando.

Um leve aplauso, misturado a umas poucas vaias brincalhonas, partiu dos aprendizes mais novos. Normalmente isso teria feito Mestre Finn sorrir, mas dessa vez ele continuou sério, os olhos fixos em algum ponto no fundo do salão.

- Agora preciso tocar num assunto delicado – disse. – Ontem à tarde, empregados do Castelo foram à floresta e notaram várias plantas danificadas. Flores e ramos arrancados, e, principalmente, o tronco de alguns carvalhos cheios de cortes que não podem ter sido feitos por animais. Não sabemos quem foi nem o motivo, mas, se alguém aqui está envolvido, peço-lhe que venha conversar comigo em particular. Prometo que as conseqüências serão mais brandas do que se tivermos de lançar mão de outros meios.

Um silêncio profundo se abateu sobre os aprendizes. Alguns – os idiotas de sempre – tinham o cenho franzido, como se perguntassem quem teria cometido tamanha indignidade, mas a maioria parecia apenas curiosa. Tarja, no meio-termo, demonstrava um leve pesar, o que Razek considerou uma boa atitude. Tudo bem, não estava certo destruir as flores e os arbustos, ele lamentava que houvesse acontecido. Mas dar tanta importância àquilo, como se a pessoa tivesse matado alguém... aí já era demais.

Terminado o desjejum, os aprendizes foram cuidar dos compromissos da manhã. Os mais novos, com onze ou doze anos e recém-chegados à Escola, tinham aula sobre Princípios da Magia, e Razek ficou satisfeito ao ver Finn acompanhá-los à Ala Amarela. Isso deixava as aulas de Magia do Segundo Círculo nas mãos de Kieran, seu professor favorito. Ao contrário de Finn, ele não tentava ser amigo dos aprendizes. Nem tinha aquele jeito arrogante, condescendente, que Razek sempre odiara em Thalia. Em vez disso, era duro, frequentemente ríspido, sempre desafiando os alunos a fim de que se superassem. Com um mestre assim, podia-se realmente aprender, embora nem sempre da maneira mais fácil.

Mas o que até agora fora fácil na vida de Razek? Ele não conseguia se lembrar de nada.

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Nota: Este conto se passa algumas luas antes dos acontecimentos narrados em O Castelo das Águias. Foi inspirado pela pergunta de um leitor do conto A Encruzilhada, publicado em Imaginários 1: que tipo de mestre Kieran de Scyllix virá a ser quando tiver aprendizes?

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Curioso? Vá para a Parte 2!

domingo, 15 de maio de 2011

Finn e Sophia de Riverast


Os meio-elfos Finn e Sophia são dois dos mestres que estão na Escola de Artes Mágicas desde a fundação. Ambos conheceram Camdell em Riverast, onde se tornaram entusiastas do método que propunha para o aprendizado. No entanto, os dois eram amigos desde muito antes, mantendo uma relação amorosa que, esporádica a princípio, acabou por se fortalecer em Vrindavahn. Atualmente vivem em aposentos interligados, na Ala Rosada do Castelo das Águias.

Poucas pessoas na Escola podem dizer que conhecem o passado do casal, mas a impressão é unânime: ambos tiveram pelo menos uma experiência dolorosa. Isso os deixou tanto sensíveis quanto cautelosos. No caso de Finn, essas características se manifestam de forma a torná-lo sempre gentil e simpático, mas relutante em se envolver emocionalmente com quem quer que seja – mais propenso à camaradagem do que à amizade, na avaliação de Anna de Bryke. É também um pacifista confesso, mais relutante em se envolver em brigas e conflitos do que a própria Anna.

Apesar de seus temperamentos e métodos divergentes, o fato de trabalharem em estreita colaboração fez com que Finn se aproximasse de Kieran de Scyllix, ao mesmo tempo que criou uma certa cisão entre os aprendizes mais avançados da Escola. Os mais voltados para os rituais e a Magia da Forma, como Lear de Madrath, tendem a se aproximar de Finn, enquanto os que trabalham mais com o poder do pensamento buscam a orientação de Kieran e o têm como modelo.

Tão ponderada e reflexiva quanto Finn, Sophia é mais calorosa, com o temperamento próprio de uma cuidadora. Ensina a todos os aprendizes do Segundo e do Terceiro Círculos, mas tem sob sua responsabilidade aqueles que pretendem trabalhar especificamente com as Artes da Cura, como a jovem elfa Lahini. Simpática e amistosa, ela se dá bem com todos os mestres, especialmente Camdell e Rydel. Também se aproximará de Anna e a ajudará a entender melhor o que é a Magia... embora não o que se passa na cabeça de certos magos do Castelo.

Finn e Sophia são retratados aqui no traço de Allana Dilene.