segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Entrevista para a Revista "Fantástica"


Pessoas queridas,

Passo rapidinho para convidá-los a conferir o vídeo da minha entrevista concedida a Carol Chiovatto, da Revista "Fantástica", durante o Fantasticon 2011.

O evento foi sensacional, reencontrei e conheci muita gente boa e vi o que se publicou nos últimos tempos dentro do gênero. Também fiquei sabendo onde e como é a Biblioteca Viriato Correia, especializada em Literatura Fantástica; foi uma pena não ter conhecido nenhum dos bibliotecários, com quem quero trocar figurinhas acerca do gênero sendo usado em mediação de leitura. Mas isso virá.

Espero que todos os presentes tenham curtido tanto ou mais do que eu. E quem não foi este ano, não faz mal: em 2012 lá estaremos outra vez!

Grande abraço,

Ana Lúcia

domingo, 7 de agosto de 2011

O Primeiro Outono - parte 3



Um sonho como o de Odravas pode facilmente se transformar em pesadelo. Não para ele próprio, que baseara sua comunidade pioneira nas Terras Férteis e passava os dias descalço, ao sol, meditando e vez por outra colhendo ervas numa horta, mas para aqueles dentre seus seguidores que tinham ido além e se mudado para lugares como Bryke.

A floresta selvagem, o vento e o frio inclemente compunham o cenário em que se desenrolava cada ato do drama: o de rachar a lenha, com o cabo do machado abrasando as mãos, o de arrancar as ervas daninhas – os joelhos esmagados contra o solo frio, endurecido -, o de recolher, nas tardes que acabavam cada vez mais cedo, as cabras magras e ariscas para o cercado. O pesadelo continuava em suas tetas, sempre escapando das mãos, no esguicho incontrolável do leite e nas formas de queijo, que depois era preciso lavar na água gélida do rio. E o cheiro horrível que ficava nas roupas, por mais que as esfregasse? Pesadelo!

- É, Maryan... Acho que vamos ter de lhe arranjar outro trabalho – disse Effimon, ajoelhando-se ao lado dela. Um dos fundadores de Bryke, ele era o principal criador de cabras e queijeiro, o que não era de estranhar, pois já fazia esse trabalho nas Terras Férteis. Segundo Pylos, fora também o primeiro dentre eles a aceitar a carne oferecida pelos caçadores da tribo, e continuava a consumi-la sempre que havia oportunidade. Isso fizera Maryan olhá-lo com uma certa reserva, a princípio, mas agora simpatizava com seu jeito franco e direto, o brilho inteligente dos olhos e o sorriso fácil. A amizade, porém, não o impedira de apontar as falhas no seu trabalho – não por desleixo, apressara-se a afirmar, mas sim por completa falta de aptidão para aquelas tarefas.

- Alguns de nós não foram feitos para viver assim – disse ele, não pela primeira vez. Maryan lhe lançou um olhar de esguelha e não retrucou. Apenas ergueu o braço e bateu a peça de roupa contra as pedras, com toda a força, de forma a atirar partículas de espuma no rosto e no cabelo de Effi.

As sombras da tarde se alongavam quando deixou o rio. O cesto com a roupa lavada pesava sob o braço, mas mesmo assim Maryan decidiu passar primeiro pela oficina de cantaria. Pylos, que arrumava uma pilha de pedras junto com um aprendiz, sorriu e a saudou de longe, enquanto Narhi veio ao seu encontro, tendo em cada mão um copo cheio de um suco arroxeado.

- Como foi lá no Effi? – perguntou, enquanto Maryan provava a bebida. – O trabalho é difícil?

- Cansativo. Não me entendi muito bem com as cabras. – Torceu o nariz, examinando o interior do copo. – O que tem aqui? Amoras?

- Sim, e também bagas de urso, e framboesas, e uvas silvestres. Tudo que se encontra nos arbustos ao redor da aldeia. O que achou?

- Azedo – disse Maryan, e em seguida tomou um grande gole. – Mas não é tão ruim assim.

- É como a vida aqui em Bryke – disse a amiga, piscando o olho.

Maryan sorriu, cansada, e não respondeu. Não havia o que dizer diante desse tipo de comentário. Doce ou azeda, aquela era a realidade, ela teria que se adaptar se quisesse continuar ali. Principalmente achar uma ocupação em que se sentisse útil – e que, de preferência, não a deixasse dolorida, desgrenhada e enregelada dentro das roupas ainda cheirando a leite.

Momentos depois, Pylos deu o trabalho por terminado e dispensou o aprendiz. Narhi o ajudou a guardar as ferramentas e Maryan lavou os copos, após o que deixaram a oficina. Ficava aberta, como todos os locais de trabalho e produção em Bryke, sendo a única preocupação resguardá-la da chuva e da neve que cairia no inverno. Já a casa era mantida com a porta encostada, quando estavam ausentes – e a exclamação de Narhi, ao empurrá-la, fez Maryan saber que tinham visitas.

- Zendak! E... Anna! Mas que surpresa! – disse, em tom alegre. Maryan entrou em seguida e se deparou com o xamã sentado junto ao fogo, mexendo alguma coisa numa panela. Perto, de pernas cruzadas – e tendo no colo o livro subtraído por Zendak há dois dias - estava uma garotinha de quatro ou cinco anos, morena como a tribo, mas de aparência mais humana que élfica. Seu rosto, erguido para os recém-chegados, mostrava um sorriso tímido, que se ampliou ao ouvir o elogio de Narhi ao seu colar de contas.

- Foi Tikka que me deu. A avó fez flechas para ela – contou. – Ficaram muito boas.

- A avó dela é prima de Zendak – disse Narhi, dirigindo-se a Maryan – Nós conhecemos as duas na floresta, mas esta é a primeira vez que Anna nos visita. A que se deve essa honra?

- Vim devolver o livro – disse Zendak. – Mostrei para Anna, que gostou muito, mas fez perguntas que não sei responder. Acho que Maryan sabe.

- Perguntas? Que perguntas? – indagou a Mestra de Sagas. Foi como uma fórmula mágica: na mesma hora, a menininha se pôs a folhear o livro, apontando uma gravura aqui e outra ali enquanto desatava a tagarelar.

- Tem esses homens aqui. Viu só? Eles estão com lanças, mas Zendak disse que é um jogo e eu quero saber se eles são amigos e por que usam essa roupa engraçada. E aqui nessa folha tem um lobo com uma corda no pescoço. Ele está rosnando para um javali, mas se ele não se soltar o javali pode matar ele. Os dentes dele são muito...

- É um cão de caça – interrompeu Maryan.

Anna ergueu a cabeça e a fitou com olhos brilhantes, cheios de expectativa. Maryan se sentou a seu lado, no chão, e pegou o livro, pensando na melhor forma de explicar sobre cães e cavaleiros a quem jamais saíra da floresta.

- Você conhece lobos e pensou que este era um – disse, por fim. – Mas é outro animal: um cão. Nunca viu cães?

- Acho que não.

- Tudo bem. São animais que vivem perto das pessoas, como as nossas cabras, mas são parentes dos lobos e comem carne. Alguns são treinados para ajudar os homens a caçar. Eles estão assim, presos em coleiras – apontou – mas vão ser soltos logo, ou então os homens que estão ali perto vão matar o javali. Entendeu? Os cães ajudam os homens.

- Elfos também? –perguntou Anna.

- Não, elfos não costumam ter cães. Nem caçam, no lugar de onde eu venho. Só os que são das tribos, nas floretas como a dos Teixos.

- E tem outras florestas? – admirou-se a criança.

- Tem! Espere um momento. – Levantou-se, indo até a pilha de livros e escolhendo um volume. Sentou-se de novo ao lado de Anna e o abriu na primeira página, ilustrada com um mapa de Athelgard.

- Aqui, está vendo? Todos nós vivemos nesta terra, e nela existem florestas, montanhas e cidades. Eu vim desta aqui, Kalket, nas Terras Férteis. Agora, estamos na Floresta dos Teixos. – Pegou a mão da menina, fazendo-a acompanhar o trajeto. – É longe, não é? E, veja, tem outras florestas, e em algumas vivem tribos parecidas com a sua.

- E outras diferentes, como os Lobos Cinzentos e Ursos Negros – intrometeu-se o xamã. – Não se esqueça delas.

- Ora, não esqueci – replicou Maryan. – Só não posso dizer tudo de uma vez.

- E já disse muita coisa – sorriu Pylos. – Você se entusiasmou, Maryan. Até esqueceu que estávamos aqui.

- Entendeu por que dissemos que deve esperar pelas crianças e começar a escola? – perguntou Narhi. Maryan a encarou, tentando retrucar, mas, antes que conseguisse, já um dedinho curioso lhe espetava o braço.

- Como é que as pessoas sabem onde é para desenhar cada floresta?

- Xiii... Isso vai longe. É melhor comermos primeiro – disse Narhi. – O que você tem aí, Zendak?

- Cogumelos e algumas raízes. – Ergueu a panela, mostrando o conteúdo acastanhado e aromático. – Cozinhei com umas ervas para dar mais gosto.

- Ótimo! Vou pegar verduras. Pode trazer o pão e o queijo, Maryan?

- Claro, mas para vocês – disse a amiga, pondo-se de pé. – Já vi o bastante de queijo e leite por hoje.

- Imagino. – Narhi franziu o nariz. – Vai voltar lá amanhã?

- Não sei – respondeu Maryan, com um suspiro. – Creio que Effimon não ficou impressionado com o meu trabalho.

- Mas tem alguém que ficou – disse Pylos.

Inclinando a cabeça, ele apontou para Anna, que continuava concentrada no exame do mapa. Seu dedo corria sobre as linhas e, às vezes, os lábios se moviam, como se falasse consigo mesma. Não havia como ouvi-la, mas, conhecendo as crianças, Maryan sabia que estava fazendo perguntas, e que nem sua imaginação nem sua inteligência poderiam encontrar sozinhas todas as respostas.

E, conhecendo a si mesma, compreendeu que acabara de encontrar pelo menos uma ocupação para o inverno.

.....

É hora de dar uma respirada. Mas não se esqueça de voltar para a Parte 4!

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

O Primeiro Outono - Parte 2


Se alguém lhe perguntasse, Zendak não teria dificuldade em admitir seu gosto pelas coisas curiosas. Nem sempre brilhantes, às vezes nem mesmo bonitas: essas coisas o atraíam por ser diferentes, porque o faziam pensar e entender o mundo de um jeito como nunca o vira antes. Com as pessoas também era assim, por isso ficou tão feliz com a chegada dos seguidores de Odravas. Dos próprios corpos, com pele clara e cabelo reluzente, às casas de pedra cheias de objetos que desconhecia, eles eram um desafio, um enigma que o xamã se dedicara a decifrar naqueles últimos anos e que, mesmo agora, continuava a estimular sua mente.

Aquele livro, por exemplo. Vendo as gravuras e fazendo duas perguntas, já aprendera coisas novas, e sabia exatamente com quem devia partilhá-las. E havia a recém-chegada, com seus olhos cinzentos, a determinação patente na maneira como se enrolava na manta e mordia o pão queimado, coberto pela coisa repulsiva feita de leite.

Sim, ele queria saber mais sobre ela.

Esse era mais um motivo para fazer o que pretendia fazer agora.

O ruído da cascata foi crescendo à medida em que Zendak se aproximava da cabana de Kyara. Três anos atrás, para surpresa dos que a julgavam morta ou perdida para sempre, sua prima retornara de uma longa estada entre os humanos, trazendo a neta ainda bebê para que crescesse em meio à tribo. Os parentes se ofereceram para alojá-las, mas, talvez por precisar de algum tempo a sós, ela preferiu ocupar a antiga cabana junto à queda d’água, que costumava ser usada para defumar peixe antes que a tribo descobrisse um lugar melhor rio abaixo. Os cantos ainda cheiravam levemente a fumaça, mas o ambiente era limpo e seco, enfeitado com móbiles e pinturas feitas pela criança.

Anna estava prestes a passar pelo seu quarto inverno. Tinha olhos como os dos elfos, grandes e oblíquos; usava tranças e roupas de couro macio, como qualquer menina da tribo, mas seu rosto era inequivocamente humano. Zendak a encontrou sentada à frente da casa, junto a um cesto cheio de penas que separava em outros dois, menores. Em um, as penas longas e retas que serviriam para emplumar flechas; em outro, as pequenas, destinadas a adornos e outros fins.

- Guarde essa aí – disse Zendak, vendo-a pegar uma pena marrom. – Com ela posso cantar e transformar você numa corujinha.

- Pode nada! E a avó, como fica? – replicou a menina. Estava rindo, mas nesse riso havia uma ponta de desconfiança. Ninguém jamais sabia quando Zendak falava a sério.

- Tenho uma coisa para você ver. – Sentou-se ao lado dela, pousando o livro no colo, e o abriu ao acaso. – O que acha dessas pinturas?

- Bonitas. Quem é esse aqui? – perguntou Anna, apontando um dos homens a cavalo. – Que bicho é esse na roupa dele?

- Não sei – admitiu Zendak. – Um lagarto?

- Não é lagarto não, porque tem asas. - Anna franziu a testa, pensou por um momento antes de passar a outra página. Outro mistério.

- Essa lança é muito comprida. É para tirar urso da toca?

- Eu soube que é um jogo – respondeu o xamã. – Dois homens a cavalo com lanças, um tenta derrubar o outro.

- Mas ninguém se machuca? – tornou a criança. – Eles são amigos?

- Não sei – disse Zendak, de novo. – Mas conheço uma pessoa – a pessoa que me emprestou esse livro – que pode explicar tudo isso a nós dois. O que você acha?

- Eu quero! – exclamou Anna, com vivacidade. – Me leva lá?

- Levar onde? – perguntou a avó, surgindo à porta da cabana. No frio matinal, usava uma túnica sem mangas e calças de couro, que, embora recém-lavadas, exibiam manchas acastanhadas deixadas pelo sangue de animais. Kyara sempre fora boa caçadora. Quando menino, Zendak ouvira inúmeros elogios à sua habilidade, mas estes se transformaram em lamento quando, seguindo o rastro de um cervo, a prima desaparecera na floresta. Várias causas tinham sido imaginadas, mas, depois de muita discussão, não conseguiram decidir se o mais provável fora uma queda ou um urso.

Foi dificil acreditar que Kyara houvesse partido com um homem.

O casamento fora feliz, mas terminara abruptamente em meio a uma guerra, e a filha que poderia tê-la confortado morrera dando à luz a pequenina Anna. Zendak sabia que, ao trazer a neta para a floresta, Kyara não queria apenas lhe dar uma família, mas também mantê-la a salvo de outras guerras, atrocidades e injustiças que vira nas terras humanas. No entanto, não havia como mantê-la para sempre alheia à sua herança. Era nisso que ele pensava ao trazer o livro.

Kyara folheou as páginas em silêncio enquanto ouvia seus argumentos. Não o interrompeu, porque ninguém interrompia o xamã, mas sua contrariedade era visível na expressão e nos gestos. Ainda assim, o que ele dizia fazia todo sentido, por isso ela pensou bem antes de dar uma resposta evasiva.

- Eu não sei se Anna tem idade para ouvir sobre essas coisas – disse, por fim. – O mundo é grande, mas é cheio de perigos. Enquanto ela é criança...

- Exatamente. O mundo é grande – replicou Zendak. – É bom que ela comece a conhecê-lo desde já. E que seja através dos elfos de Bryke, porque eles têm todas essas coisas – os mapas, os livros, as lunetas – e são boa gente, que veio procurando paz e não guerra. Nós não sabemos muito sobre o mundo além da floresta, e os homens – encolheu os ombros – bom, ela terá de conviver com eles um dia, então é melhor que vá aprendendo um pouco a esse respeito.

- Por que insiste nisso? – indagou Kyara, franzindo o cenho. – Por que fica dizendo que ela terá de conviver com os homens?

- Por quê? É só olhar para ela. – Zendak fez um carinho no cabelo de Anna, traçou o contorno de sua orelha com o dedo. – Hoje ela é uma criança, mas imagine-a daqui a quinze, vinte... ou, digamos, cinqüenta anos. Conforme for crescendo, ela irá perceber cada vez mais que é diferente de todos aqui, e quando envelhecer será mais ainda. É claro – apressou-se a acrescentar – sua neta pode acabar concluindo que prefere ficar entre nós, voltar para a floresta e ser feliz, e isso vai ser ótimo para todos. Mas antes disso ela tem que cruzar o rio. Tem que conhecer outros da mesma raça. E é melhor que se prepare bem antes de ir.

- Hunf! Não sei no que isso pode ajudar – Kyara fungou, afetando desprezo. – Os homens não são como nós. Não importa o que digam, nunca se sabe o que estão pensando. Muito menos o que farão.

- Pode ser. Mas, se Anna souber como eles vivem, conhecer os costumes e as histórias deles, isso será melhor do que nada. Além disso, é bom que conheça também as pessoas de Bryke. Não vejo tão longe para saber como ela irá crescer – disse, em tom reflexivo. – Mas longe o bastante para saber que nós e os elfos brilhantes seremos cada vez mais um único povo.

- Seremos. Se você continuar a alimentá-los no inverno.

- Eles me alimentam também – sorriu o xamã. – Alimentam meus pensamentos. Bom, e então? Posso levar Anna até a vila?

- Levaria de qualquer jeito – resmungou Kyara. – Mas não a deixe chegar perto das cabras. Não confio naqueles chifres. E preste atenção em tudo que aquela gente disser a ela.

- Serei todo ouvidos – prometeu Zendak.

.....

O xamã vai lá. E você? Corra para a Parte 3!