sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Hino Torto : um poema de Anna de Bryke



Oi, Pessoas! Tudo bem?

O mundo não acabou, a vida continua e também a saga do Castelo. Eu queria trazer mais um conto pra vocês antes do fim do ano, mas nestes dias corridos não pude escrevê-lo, nem quis lançar mão de um dos contos mais longos que têm de ser postados em várias partes.

Assim, o que acabei por trazer foi um poema, acompanhado do link para um post de 2006, quando eu estava acabando de escrever a primeira versão de Um Ano e um Dia. Quem leu o Castelo ou acompanha este blog - e principalmente as poucas e generosas pessoas que fazem ambas as coisas - irá gostar de ler este texto que se entrelaça com a gênese da série, explica um pouco sobre o processo de criação e revela um dos misteriosos poemas de Kieran. Aproveitem, vocês vão lê-lo antes da Anna!

E, por falar nela... É claro que a Mestra de Sagas também arrisca seus poemas. Não são assim tão bons, mas ela tem menos vergonha de mostrá-los. E, assim como o de Kieran, ele traduz os pensamentos dela, ou talvez uma tentativa de se manter serena e otimista em meio à difícil situação em que irá se encontrar no segundo livro da série.

Eis o poema de Anna:

Hino Torto

Se algum dia um deus me tocar,
Que não queira vestir-me a pele;
Já gastei dela cada polegada
Reinventando meu destino.

Se um espírito falar por mim,
Que use sua própria voz:
Com a minha conto histórias,
Não faço profecias.

E se um herói me quiser investir
Do poder em seu nome,
Que me dê uma boa máscara
Para que eu possa fugir no último ato
Sem ser reconhecida.

Serei um ídolo de pés de barro,
Senhora do bizarro,
Oficiante de um estranho rito.

Enquanto me restar uma única palavra,
Nem espada nem magia
Lançarão mais vidas ao abismo.


.......

Adoraria comentários. Mas, se não der, tudo bem.

A todos vocês, adeptos ou não de comemorar o Natal, desejo um bom descanso e dias felizes ao lado de seus amigos e família. Ainda volto antes do fim do ano pra deixar mais um abraço.

Até breve!

Post ilustrado com uma versão fofinha de Anna de Bryke pela querida e talentosa Allana Dilene.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Meu Amor é um Sobrevivente: Guia para Submissão e uma Novidade



Bravas Pessoas,

Como já devem ter percebido, gosto bastante de histórias de amor. Em O Castelo das Águias, além da Anna e do Kieran, tem o Raymond e a Kyara, a Maryan e o Zendak, o Finn e a Sophia e vários outros casais. Em O Jogo do Equilíbrio tem o Cyprien e a Mariotte, em Meu Amor é um Mito tem a Camila e o Hermes e assim por diante. Não que haja romances em todos os meus trabalhos, mas em boa parte deles. E sempre que posso dou um jeito de conseguir, se não um final feliz, pelo menos aquele gostinho de "eterno enquanto dure".

Pois bem. Meses atrás, meu caríssimo editor Erick Santos me surpreendeu com um convite: o de substituir Eric Novello, partilhando com Janaína Chervezan a organização da Série Amores Proibidos. Claro que aceitei na hora e contei para dois ou três amigos, mas guardei a "notícia oficial" para mais tarde, quando fôssemos publicar... tcharaaaan! o guia para submissão de contos!

Como podem ver, depois de vampiros, anjos e personagens mitológicos chegou a vez dos mortais. Estes, porém, devem ser muito especiais, espertos e duros na queda para sobreviver a um cenário pós-catástrofe. Aliás, para quem pretende participar da seleção, uma dica: neste volume da série, mais do que qualquer outro, o cenário será muito importante. Caprichem na ambientação.

O post da editora sugere alguns livros que refletem aquilo que buscamos. O meu é ilustrado com o casal de Jogos Vorazes, Peeta e Katniss.

Desde já, desejo muita inspiração a todas vocês (sim, a coletânea só admite autorAs) e me coloco à disposição para esclarecer quaisquer dúvidas.

Aguardo sua participação!

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Descobertas


Antes de começar: prefere ouvir esta história narrada por mim? Clique aqui. Se prefere ler, é só seguir em frente!


Bem que me avisaram, lenha úmida não dá bom fogo, pensou Raymond, tossindo enquanto soprava para atiçar as brasas. O vento silvava através das fendas, que eram muitas, espalhadas pelas quatro paredes e até no teto da velha cabana. Não que ele estivesse se queixando, longe disso. Fora uma sorte, em meio à nevasca da tarde anterior, ter encontrado aquele abrigo, ainda que rústico e pelo jeito abandonado. Comida não havia, mas a lareira estava em condições de ser usada, e com as peles que encontrou enroladas num canto ele ficou bem aquecido enquanto as roupas secavam. No fim, dormiu, ignorando os uivos do vento e os roncos da barriga.

Ao despertar, a neve tinha cessado. Isso lhe permitiu sair, catar um pouco de lenha e até pegar uns peixes no rio sinuoso que corria atrás da cabana. Usou para isso uma forquilha improvisada com um galho, e se saiu melhor do que esperava, exceto pelo fato de ter caído sentado no rio ao capturar o quinto e último peixe. Como desforra, assou-o antes de todos os outros, sua própria pele curtindo diante da lareira enfumaçada, as roupas estendidas para secar sobre uma armação de madeira. Raymond não sabia para que servia aquilo, mas suspeitava de que fosse parte de algum instrumento, quem sabe um tambor em que a pele fosse esticada com cravelhas. Achá-lo na cabana de um caçador era um pouco intrigante, mas, se uma coisa ele aprendera em suas andanças, esta fora o fato de que a vida nos surpreende a cada momento. Por que um caçador não poderia fazer música se ele mesmo, que na adolescência ganhara a vida como artista, estava por sua vez a caminho de assumir um posto de guarda-caça?

Um pouco de gordura avivou as brasas, iluminando o sorriso de Raymond ao pensar em sua própria história. Era daquelas boas de contar na feira: um músico e trabalhador itinerante, preso ao roubar uma torta de carne e libertado em troca de se alistar como voluntário de guerra. Matou alguns homens – isso era inevitável – mas salvou várias vidas, inclusive a de um jovem adversário que mais tarde souberam ser o herdeiro de um barão. Quando partiu, resgatado pela família, ele recompensou seu salvador com uma carta que o nomeava guarda-caça em suas terras, uma posição modesta, mas que lhe garantiria o sustento até o fim da vida. Isto é, desde que conseguisse chegar lá, atravessando meio País do Norte numa viagem da qual muitos desistiriam só de olhar o mapa. Mas isso não deteve Raymond de Pwilrie.

- A um belo futuro! – Em voz alta, ele brindou a si mesmo, erguendo uma tigela cheia d´água do rio antes de tirar o peixe da grelha. Queimou os dedos, mas a fome era grande o bastante para que fosse em frente, arrancando a carne da espinha e a engolindo quase sem mastigar. Devorou, assim, os dois primeiros peixes. Estava pensando em como embrulhar os outros para viagem quando ouviu – com uma nitidez que não deixava margem a dúvidas – uma pancada do lado de fora da porta, seguida por palavras abafadas pronunciadas em voz feminina.

Na mesma hora, Raymond se levantou, reagindo com o senso comum do Povo Alto: se era uma mulher que estava lá fora, não precisaria de uma arma de defesa, mas de alguma coisa que cobrisse a sua nudez. Ele tentou chegar até suas roupas, mas o gesto ainda ia a meio quando a porta se abriu.

E de repente ele se viu diante da jovem mais linda e mais estranha do mundo. Vestida em couros e peles, tinha o cabelo preso em várias tranças e olhos grandes, que pareciam iridescentes. Seu rosto de um oval perfeito estava contraído, e Raymond só pôde tapar apressadamente o sexo com as mãos antes que ela lhe tocasse o peito com a ponta de uma lança.

- Ei, calma, moça! Desculpe se fui entrando, achei a casa vazia – disse ele, sentindo sua barriga se encolher de medo. – Desarrumei as peles, mas não mexi em mais nada, só acendi o fogo para grelhar os peixes. Se está com fome...

Apontou com o queixo para a lareira, um gesto cuidadoso, que se tornou mais confiante quando a moça baixou a arma. Sem deixar de encará-lo, ela deu alguns passos para o lado e pegou um peixe, refletiu por um instante e pôs a lança sob o braço, ficando com as mãos livres para comer. Ao que parecia, estava com tanta fome quanto Raymond.

- Não tem nenhum tempero, mas a carne é boa. Pode comer tudo, se quiser – disse ele, com expectativa. – E mais uma vez me desculpe por ter invadido sua casa.

- Ah, não é minha – replicou ela, entre duas mordidas no peixe. - Entrei para secar os pés, mas não vi seu fogo, porque a fumaça ficou aqui dentro em vez de subir pela abertura.

- Lenha ruim – ele explicou, e arriscou um sorriso. A moça também sorriu. Tinha dentes muito brancos, de um jeito que só se via no Leste, e a pele era morena como a de Raymond, mas nem lhe passou pela cabeça que pudesse estar diante de uma conterrânea. Ao contrário, algumas coisas na moça nem pareciam ser próprias de uma pessoa: não só os olhos brilhantes, mas principalmente as orelhas, que eram alongadas como as de um lobo. Ele puxou pela memória, resgatando fiapos de histórias ouvidas aqui e ali sobre o povo das orelhas pontudas, que vivia nas cidades do Sul e construía palácios. Não parecia ser o caso desta, mas mesmo assim aquilo o acalmou: ela podia ser de uma raça diferente da sua, mas pelo menos era gente. Não um demônio ou uma criatura qualquer da floresta.

- Vou pegar minha roupa – Raymond falou, sem jeito. A moça assentiu, sem tirar os olhos dele, mas sua expressão perdera toda a dureza do início. Agora parecia apenas curiosa – e em que medida ele não tardaria a comprovar, quando, passando perto dela para pegar as roupas, sentiu uns dedos finos e ásperos roçando os pelos do seu peito.

- Como você tem cabelo aqui? – ela sussurrou.

O tom era reverente, como o de quem faz uma descoberta. Raymond encolheu os ombros, sentindo uma espécie de vergonha ao perceber que a estranheza era recíproca: a moça também nunca vira uma pessoa como ele. Espero que não ache que sou um demônio, pensou. De qualquer jeito ela não parecia ter medo, pois continuou a tocá-lo, primeiro no peito – o pelo negro, os músculos que ainda conservava apesar de estar muito magro – , depois nas faces, cobertas por uma barba cheia após duas luas sem navalha. Ele fechou os olhos sob seu toque, desejando fazê-lo durar, e estremeceu ao ruído da lança sendo largada no chão. Que fosse, então, o que devia ser. Leves como asas, as mãos da moça percorreram os tendões nos braços de Raymond, e ele inspirou fundo, saboreando cada instante do prazer de ser descoberto.

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ATUALIZAÇÃO: Já que gostaram da ideia, este conto teve uma continuação. Clique aqui para saber o que aconteceu uns dias depois.

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E, para quem ainda não viu: não deixem de conferir a ilustração que a Angela Takagui fez do casal. Ficou linda! Basta clicar aqui.

Até breve!

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Kyara e Raymond



A história de Kyara e Raymond é a primeira que Anna conta a seus novos amigos do Castelo das Águias. E talvez seja aquela que mais tem influência em sua vida.

Quando era uma jovem caçadora da Casa do Lobo, Kyara saiu em perseguição a um gamo e se afastou demais da Floresta dos Teixos. Ao se abrigar em uma choupana abandonada, deparou-se com o primeiro ser humano que via em sua vida, e que também era um estrangeiro naquelas paragens: um ex-artista e soldado chamado Raymond de Pwilrie.

Tal como Naheen, o Mestre de Ciências do Céu do Castelo, e Cyprien, herói de O Jogo do Equilíbrio, Raymond era um membro do Povo Alto, amante das artes e das estrelas. Sua natureza sonhadora, porém, até agora não o havia ajudado muito no sentido de ganhar a vida. Em paga de um favor prestado a um nobre, ele recebeu uma oferta de trabalho como guarda-caça, atividade que desconhecia, mas na qual acabou por se sair melhor do que esperava... graças à ajuda, também inesperada, da jovem elfa que conheceu naquela noite.

Raymond e Kyara viveram juntos por vários anos e tiveram uma filha a quem deram o nome de Anna. Infelizmente, a pequena família foi destruída pela guerra, sobrando apenas Kyara e uma segunda Anna: sua neta, nascida de um ato de violência cometido por mercenários. Levada pela avó para a Floresta dos Teixos, a pequena Anna se tornou uma Mestra de Sagas e sempre considerou Kyara e Raymond como uma espécie de casal-modelo.

E, talvez por isso, não veja problemas em entrar num relacionamento com alguém que é diferente dela em quase todos os sentidos.

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Para ler um conto sobre o primeiro encontro de Kyara e Raymond, é só clicar aqui.

O casal foi retratado pela artista Angela Takagui especialmente para o blog do Castelo.


segunda-feira, 29 de outubro de 2012

As Casas Nobres de Athelgard e as Onze Cidades



A história das Terras Férteis é a história da convivência entre várias raças. Desde os primeiros Homens que habitaram a região, sobrevivendo como caçadores e coletores, até os Vanir e posteriormente os Elfos Brilhantes, houve conflitos e luta pelo poder.

Com ciência e tecnologia mais avançadas, os Elfos rapidamente assumiram uma posição dominante, sujeitando os descendentes dos Homens e dos Vanir - agora indistinguíveis uns dos outros graças a gerações de miscigenação - a uma condição inferior, principalmente nas chamadas Onze Cidades. Estas são os maiores centros urbanos das Terras Férteis, e cada qual foi fundada por uma família élfica que se atribuiu o status de nobreza.

Por tradição, cada família tem como símbolo uma pedra preciosa, que é usada em seus escudos de armas e sob a forma de joias. Pode-se reconhecer um membro da nobreza pela pedra do brinco que usa na parte superior da orelha direita desde o nascimento, o que acaba por deixá-la permanentemente dobrada para baixo. Já os bastardos reconhecidos pelas Casas Nobres têm direito a um brinco da mesma pedra no lóbulo da orelha. Brincos usados por pessoas não pertencentes à nobreza não podem ostentar nenhuma das onze pedras, embora estas possam ser utilizadas em colares, braceletes e outras joias.

Antes da criação da Liga das Terras Férteis - que extinguiu os direitos da nobreza, tanto élfica quanto humana, e unificou a moeda e boa parte da legislação do Sul de Athelgard - cada uma das Onze Cidades se desenvolveu de forma independente, de acordo com a geografia, o clima ou mesmo os interesses da família dominante. Para citar um exemplo: Bergenan, uma cidade de planície, desde o início abrigou muitas fazendas de grãos e de criação de animais, e foi lá que surgiu a primeira Escola de Ciências da Terra. Já Scyllix, árida e de topografia acidentada, sempre sofreu com os ataques de inimigos do Oeste, o que levou os cidadãos a se militarizarem cada vez mais.

Como parte do acordo de criação da Liga, e embora as cidades precisassem de atividades variadas para continuar a existir, cada uma passou a ser a principal responsável por um aspecto da administração, da economia e do desenvolvimento cultural. Isso ocorreu mais ou menos de acordo com o que parecia ser a "vocação" da cidade, e assim continuou desde então, apesar da insatisfação de boa parte da população, à qual determinadas atividades acabam por ser impostas à revelia.

Estas são as Casas Nobres, suas respectivas cidades e atribuições principais:


Casa Safira – Scyllix – Defesa das Terras Férteis
Casa Topázio – Bergenan – Agricultura e Pecuária
Casa Lázuli – Kalket - Comércio e Comunicações
Casa Esmeralda – Ardost - Educação e História
Casa Diamante – Madrath – Artes
Casa Ônix – Kawles – Administração
Casa Coral – Thaelke – Diplomacia
Casa Turquesa – Erchedel – Leis
Casa Ametista – Donnes – Ciências Aplicadas
Casa Âmbar – Herrien – Ciências Puras
Casa Rubi – Riverast – Cura, Magia e Religião

Há descendentes de Casas Nobres vivendo em diferentes cidades das Terras Férteis e (raramente) em outras regiões de Athelgard, mas cada uma das Onze maiores continua a abrigar o o solar de cada família fundadora. Ali vive o chefe da família com parentes de vários graus, agregados e empregados quase sempre humanos ou mestiços. Alguns ramos familiares menores se estabeleceram em cidades diferentes da sua e cresceram a ponto de rivalizar em riqueza, poder e influência com os fundadores, como acontece com um ramo da Casa Âmbar de Herrien que, estabelecido em Scyllix, acabou por se tornar inimigo político da da Casa Safira.

De um modo geral, os membros das antigas Casas Nobres são respeitados e ocupam posição de destaque na sociedade, contribuindo para que continuem a se considerar acima das demais pessoas. Eles seguem tradições próprias e se comportam como se ainda fossem membros da nobreza, com todos os direitos que cabiam a seus antepassados.

E, justiça seja feita, também não costumam fugir de seus deveres, embora geralmente sejam mais fiéis às suas famílias e à sua raça do que à população ou à Liga das Terras Férteis.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Excalibur: resultados da seleção para a coletânea



Ladies and Gentlemen,

Muitos de vocês já devem saber, mas não posso deixar de noticiar aqui no blog o resultado da seleção para a coletânea Excalibur, da qual sou co-organizadora juntamente com Erick Santos. Os autores, inclusive os convidados, e os títulos de seus contos vocês conferem no blog da Editora Draco.

Quero agradecer e parabenizar a todos que enviaram seus trabalhos. Já estou entrando em contato com os autores e iniciando o trabalho de copidesque. Àqueles que tiverem dúvidas, peço que me escrevam usando o endereço anamerege@gmail.com.

E para aqueles que aguardam o segundo volume da série do Castelo, uma boa notícia. Apesar da parada obrigatória para cuidar da coletânea, minha meta, relativa à reescrita do livro, foi batida por ampla margem, com o que a previsão de publicação está mantida para meados do ano que vem.

Enquanto isso, muito trabalho a ser feito. Muito suor, muita adrenalina, muita inspiração. E a certeza de que colheremos belos frutos.

Até breve!

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Post ilustrado com imagem retirada daqui. Só uma antecipação do meu conto "A Senhora da Floresta", que sairá na Excalibur.

domingo, 14 de outubro de 2012

Sino dos Ventos, Sino de Adeus


Quando ela saísse, os sinos tocariam pela última vez.

Thalia estava deitada sobre o colchão nu, vestindo as roupas que não chegara a tirar. Tinha passado a noite ali, sozinha, no quarto que Shanion desocupara havia apenas três dias – o quarto que ela visitara tantas vezes desde que o Mestre de Sagas viera para o Castelo. Tinham sido vários anos, ao longo dos quais ela se habituara a estar cercada por arcas elegantes e pela estudada desordem de livros e papéis. E, claro, também se habituara a Shanion: um amante pouco exigente, às vezes descuidado, mas sobretudo um amigo com quem ela podia conversar e falar com franqueza.

Foi numa dessas noites, naquele mesmo quarto, que ele lhe dissera que ia partir. E o dissera sem subterfúgios, como se fosse uma das coisas corriqueiras sobre as quais sempre falavam, aconchegados sob a manta de lã. Aquilo a atingira, embora ela soubesse que não havia razão. Como qualquer membro legítimo de uma Casa Nobre, Shanion devia agir de acordo com o que fosse melhor para a família e se casar com a pessoa escolhida por eles, como os irmãos de Thalia tinham feito tantos anos antes. Que ela própria houvesse rompido um compromisso para poder ascender aos últimos Círculos da Magia era apenas um detalhe, tão irônico quanto o fato da prometida de Shanion também ser uma maga. Casada, ela seria a senhora de um solar, mas nunca uma mestra da Escola de Riverast nem membro do Alto Conselho. Jamais lhe enviariam avisos através do fogo ou dos sonhos, nem as mensagens cifradas que, no Castelo das Águias, Thalia era a única a receber. Ela as partilhava com Camdell, porque entendia que ele também tinha esse direito, embora houvesse se afastado do Conselho na época da Cisão. Teria partilhado muito mais se ele quisesse. Mas até nisso, como em tantas outras coisas, Camdell era diferente de todos os seus amigos.

Um ruído seco, de madeira contra pedra, subiu até ela vindo do térreo. Rydel tinha acordado e aberto a janela. Sua voz límpida se fez ouvir em seguida, com a frase que ele repetia todas as manhãs. Eu te saúdo, lindo dia! Isso no sol ou na chuva, o que incomodava Shanion, para quem os seguidores de Odravas se mascaravam sob um estado de perpétua felicidade. Aquilo não era real, argumentava. Havia dias miseráveis, com chuva e vento; havia pensamentos mesquinhos e momentos de tristeza. Ele mesmo, quando lhe contou sobre a partida, não parecia feliz, já que preferiria ter escolhido ou ao menos sido consultado sobre a futura esposa. Por outro lado, reconhecia que precisava ir em frente, que não havia como progredir em sua posição na Escola de Artes Mágicas, onde tudo que se exigia de um Mestre de Sagas era que ensinasse os textos mais básicos a crianças desatentas.

Como se nada do que ficava para trás tivesse importância.

- É a coisa mais simples. Nem vou deixar instruções à minha sucessora – dissera ele, e olhara em torno, onde ainda estavam seus livros e outros objetos. – Aliás, não vou deixar nada, exceto os móveis que já estavam neste quarto. Ah, menos os sininhos de vento. Gosto tanto deles, e creio que não é exatamente um roubo. Ou eu deveria falar com o intendente? O que você acha?

- Acho que pode levar – disse Thalia, pouco à vontade. Por estranho que parecesse, naqueles anos que já durava sua amizade com Shanion ela também passara a gostar dos sinos, que ficavam pendurados diante da porta como um móbile. Tilintavam à menor brisa e soavam com uma bela melodia sempre que alguém entrava, o que a incomodara no início, pois fazia saber aos demais moradores da Ala Rosada que o Mestre de Sagas tinha companhia. Ele, porém, que geralmente era tão sério, só admitindo como arte o que estivesse dentro de seus elevadíssimos padrões – ele, Shanion de Ardost, se encantara por aqueles sininhos de louça colorida, delicada, porém barata, uma quinquilharia vendida por uma artesã humana no mercado de Vrindavahn.

E, por alguma razão que nem ela mesma saberia explicar, Thalia os escondera e os levara consigo na última noite que passara na Ala Rosada.

Os ruídos agora eram mais altos do lado de fora. A maga se levantou e foi até a janela, espiando por uma fresta o caminho de pedras que se via lá embaixo. Rydel estava saindo, com o cabelo faiscando ao sol e as orelhas aprumadas de quem jamais usara uma pedra de nobreza. Dois empregados passaram em seguida com um carrinho cheio de folhas secas, e fora de suas vistas aprendizes do Primeiro Círculo faziam a costumeira algazarra. Nada como aquela manhã, três dias atrás, quando as arcas e caixas de Shanion eram postas na carroça que o levaria embora para sempre. Naquele dia estava chovendo muito, e as despedidas tinham acontecido no refeitório, restando apenas o cocheiro contratado e seu ajudante para acompanhar a partida do Mestre de Sagas. Ela mesma lhe desejara boa sorte diante de todos os outros, depois de ter passado a noite em seus aposentos da Ala Amarela. Tudo para não estar com Shanion quando ele desse pela falta dos sinos.

E, tolo que ele era, não deduzira que aquilo fora obra de Thalia. Pouco mais tarde, após ele ter ido embora, ela soube que ele andara procurando pelos sininhos, que perguntara ao intendente e aos empregados se os tinham tirado do quarto e acusara os aprendizes de lhe pregarem uma peça. Para cúmulo de tudo, chegara a pedir ajuda aos magos do Castelo, mas todos eles tinham dado de ombros. Por fim, partiu, e Thalia ficou longe de seu quarto por duas noites, até voltar pé-ante-pé com os sinos embrulhados em um pano.

E agora eles estavam ali, tilintando à brisa da manhã, e soaram com mais força quando ela acabou de abrir a janela. Tinha fechado os olhos e tentava ignorar os outros sons, os risos e as vozes das crianças, o ranger das rodas do carrinho e o canto dos pássaros. Em sua mente só devia haver os sinos, um som que guardaria para sempre a memória de suas noites com Shanion. Fora um período bom, mas tinha acabado. Essa era a coisa certa em que acreditar.

Thalia exalou longamente o ar em seus pulmões e abriu os olhos. O quarto não era o mesmo, sem as arcas e os tapetes trazidos do solar da Casa Esmeralda e com as estantes nuas. Em uma ou duas luas elas seriam preenchidas com os livros da nova Mestra de Sagas, cuja chegada não apenas Camdell mas também Lara, Rydel e – por razões que só ele sabia – Kieran de Scyllix aguardavam com prazer e ansiedade. Que ela fosse feliz ali, pensou Thalia, desejando poder ser mais sincera. Que todos fossem felizes, principalmente Shanion em sua nova vida. Ela também voltaria a sê-lo tão logo deixasse aquele quarto.

Os sinos ainda soavam quando ela saiu sem olhar para trás.

...

Este conto se passa pouco antes da chegada de Anna de Bryke ao Castelo das Águias, para substituir Shanion como Mestra de Sagas. Ela ocupou o antigo quarto dele e herdou os sinos de vento. Mas não por muito tempo. :)

Se vocês não conhecem a Thalia, cliquem aqui para saber mais e apreciar uma ilustra exclusiva deste blog!

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Thalia de Erchedel


Séria, reservada e - ao menos à primeira vista - muito arrogante, o que possivelmente se deve ao fato de descender de uma das Casas Nobres dos Elfos Brilhantes. Essa é Thalia de Erchedel, que ensina os princípios da Magia aos jovens recém-chegados à Escola de Artes Mágicas.

Não se sabe muito sobre a vida pregressa de Thalia. Juntamente com Finn e Sophia ela foi uma das mestras que participaram da fundação da Escola dirigida por Camdell e Theoddor, tendo sempre permanecido ligada ao Primeiro Círculo. Entre os aprendizes, Thalia tem a reputação de ser uma mestra exigente, que os faz decorar listas e listas de correspondência entre os elementos, as plantas, os astros, e periodicamente revisa seus grimórios para prevenir alguma anotação desastrada. Também usa a visão e a audição privilegiadas de sua raça para manter a atenção e a disciplina. Essas características lhe valeram o apelido de "Coruja" e a fama de rigorosa, embora, como ela mesma diz, seus métodos sejam até suaves em comparação aos do Carrasco que os aguarda no próximo Círculo.

No início do livro, a narradora Anna de Bryke percebe que há uma rixa entre Kieran e Thalia, que vem desde o tempo em que ele era o Mestre das Águias de Scyllix. Além disso, Thalia não demonstra grande receptividade em relação a Anna, o que levará a um conflito entre as duas. Ainda assim, a elfa brilhante não hesitará em se alinhar aos outros mestres do Castelo quando surge uma ameaça, usando seu poder em defesa das águias e de uma amiga em perigo.

Os familiares de Thalia serão apresentados aos leitores no segundo livro da série , mas há muitas histórias por trás da personagem. Vocês podem ler uma delas aqui

Até lá!

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Esta ilustração foi feita pela artista Angela Takagui especialmente para o blog do Castelo.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Top 5 e Entrevista no Pop Division



Pessoas Queridas,

O conteúdo deste post já foi bastante divulgado nas redes sociais, e além disso o coloquei na Estante Mágica, mas este blog não pode deixar de registrar duas entrevistas que saíram no final de setembro.

A primeira obedeceu ao formato que já se tornou tradicional no blog da Editora Draco: o Top 5, em que os autores da casa falam das influências que nortearam seu trabalho. As minhas diferem um pouco da maioria, então quem ainda não viu e tem curiosidade de saber de onde saiu tanta "hipponguice" é só correr lá.

A segunda entrevista foi concedida ao meu colega de editora, Jim Anotsu, autor de Annabel e Sarah e do recentemente lançado A Morte é Legal. Aqui falo também de influências, mas vêm à baila assuntos como a minha formação teórica e posição em relação à literatura (e aos leitores) contemporâneos. Quem tiver curiosidade ou quiser manter um diálogo a respeito, clique então no blog do Jim, o Pop Division.

E como uma homenagem a esse autor que não se deixa fotografar sem (no mínimo) um saco de papel pardo na cabeça, este post é ilustrado com o avatar do Andy, seu personagem do novo livro. ;)

No mais... Bom início de outubro, com muitas novidades e surpresas. As minhas já estou preparando aqui... :)

Abraços a todos!

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

O Jogo do Equilíbrio: conheça o Leste de Athelgard!


Rrrrrespeitável Público!

Depois de tantas histórias sobre magos e Magia, chegou a vez de falarmos de um artista. Aliás, um "senhor artista": Cyprien de Pwilrie, o mais famoso saltimbanco de Athelgard, autoproclamado "Mestre das Sete Artes".

Cyprien pertence a um arco de histórias diferente do que é protagonizado por Anna e Kieran, mas seus caminhos se encontram em vários momentos. Tomas, o mestre de fantoches da Ala Violeta, é um velho amigo de Cyprien, e os dois se correspondem com regularidade, combinando inclusive um reencontro que se dará alguns anos após os acontecimentos narrados no livro "O Castelo das Águias". Além disso, Kieran e Cyprien terão um amigo em comum, que vocês conhecerão no segundo livro da série do Castelo, "Um Ano e Um Dia".

A aventura narrada em "O Jogo do Equilíbrio" se passa num momento complicado na vida de Cyprien. Viúvo, com um filho pequeno, uma mulher exigente e ciumenta e muitas dívidas, ele terá, literalmente, que fazer malabarismo para dar conta de todos esses problemas e ainda se livrar de um rival.

A história da construção do personagem e a trajetória do livro, desde sua publicação como obra independente até a inclusão na série Contos do Dragão, pode ser conhecida aqui no blog da Editora Draco. Já para adquirir a obra em formato Kindle, é só clicar aqui.

Espero que vocês leiam, que gostem... E depois me digam.

Abraços a todos!

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Entrevista para o site Alcateia


Olá, Pessoas! Tudo bem?

Sei que muita gente já viu, mas não quero deixar de postar aqui a entrevista que gravei para o blog "Alcateia". Numa conversa com a Eddie Van Feu, falo de todos os meus livros, principalmente de O Castelo das Águias, e deixo meu recado para quem está começando a escrever. Ah, e mexo muito as mãos! :)

A entrevista só foi ao ar em agosto, mas a gravação data de abril, durante a I Odisseia de Literatura Fantástica. Eu e a Eddie estávamos hospedadas com a capista do Castelo, a Carol Mylius, também responsável pela gravação. A edição mucho loca foi feita posteriormente pelo Renato Rodrigues. Espero que gostem!

E falando em Odisseia, já soube por um dos organizadores que a do ano que vem será nos dias 12 e 13 de abril. Minha presença está praticamente confirmada, mas o que eu queria mesmo é que tivéssemos um evento nos mesmos moldes aqui no Rio de Janeiro. Será que a gente consegue? Vamos torcer - e, é claro, batalhar para chegar onde queremos.

Até a próxima!

sábado, 22 de setembro de 2012

Talismãs (Breve Epílogo com Ligeiríssimo Spoiler)


A clareira tinha sido limpa e decorada. Estavam no equinócio de outono, por isso não poderiam ter esquecido as frutas e espigas de grãos, mas também havia guirlandas de folhas, algumas com as flores da estação, em homenagem ao casamento. A que seria usada pela noiva era especial, toda florida, embora para isso tivessem precisado de um pouco de magia. Mas, por uma vez, não foi difícil conseguir a colaboração dos colegas do Segundo Círculo. Não era sempre que tinham uma ocasião como a de agora.

Freydis tinha ajudado a tecer a coroa, mas seu presente fora dado mais cedo: uma concha espiralada, semelhante àquela que ela ganhara da menina-foca, embora não tivesse vindo da mesma praia. A oferta fora recebida com carinho, mas permanecia em sua caixinha forrada à espera de ser transportada com outras bagagens para a moradia do casal. Agora, Freydis se juntara ao cortejo composto por boa parte das mulheres e meninas do Castelo, que seguiam a tradição de advertir a jovem prometida sobre o casamento.

- Você não sabe onde está se metendo. É só olhar para aquele homem e a gente sabe que ele não vai deixá-la dormir à noite – dizia Flora, mulher do mestre dos fantoches.

- Vai sim – contestou a cozinheira, Netta. – Ele não vai se importar com ela, e sabe por quê? Porque não vai ter tempo! Às vezes ele nem come, de tão ocupado!

- Deixe disso! Você sabe como ele gosta da sua sopa de lentilha – riu a noiva. Outras mulheres se aproximaram para apontar defeitos em seu futuro marido, algumas carregando nas tintas, mas sua convicção não parecia se abalar. Ela quer ficar com ele, de verdade, pensou Freydis, e no momento seguinte: e acho que ele também quer.

O prometido se aproximava por uma trilha mais estreita, coberta de folhas secas que estalavam sob seus pés descalços. Também ele era seguido por um cortejo, mas neste não havia meninos, só adultos e rapazes crescidos. Iam dizendo todo tipo de bobagens e rindo perdidamente, mas ele mesmo só sorriu uma vez - e o sorriso morreu em seu rosto quando, já a ponto de tomar a futura esposa pela mão, o mestre de Música se intrometeu entre eles, dizendo alguma coisa que o deixou visivelmente com raiva.

Toda a clareira prendeu o fôlego à espera da reação. Freydis, que se separara do grupo das mulheres, estava agora ao lado de Orm, e os dois respiraram aliviados quando a cerimônia seguiu conforme o previsto.

- Pensei que ele ia matar Mestre Urien com as próprias mãos - sussurrou o garoto.

Freydis abafou uma risadinha e voltou sua atenção às palavras do rito. Camdell era o oficiante, ajudado pelo xamã com o olho tatuado, que todos no Castelo acharam estranho durante exatamente um dia. Então se acostumaram e passaram a gostar dele. Vindo de outras terras, o xamã não conhecia as tradições das Terras Férteis, mas passou diligentemente a Camdell o laço para atar as mãos dos prometidos, depois o bolo de fruta, com o qual um após outro tiveram um leve engasgo.

- Viu só? Quem vai morrer, mais tarde, é você - sussurrou Freydis, cutucando o amigo nas costelas. - O bolo deve estar seco. Eu disse para usar a receita que leva vinho.

- Eles nem vão lembrar disso daqui a pouco - sorriu Orm.

Nesse momento, as últimas palavras do ritual eram proferidas, e todos aplaudiram quando o casal trocou um longo beijo. Urien, já a postos num canto da clareira, fez um sinal para os alunos encarregados da música, e a suave melodia de flauta que se ouvira até então foi substituída por uma canção festiva, com letra brincalhona e os sons alegres de gaita e de tamborim. Mestres, aprendizes e convidados começaram a se misturar uns aos outros e a dançar, inclusive - para o espanto de Freydis - os recém-casados, cada qual arrastado por um grupo para o meio de uma roda.

- Pensei que nunca veria isso - a menina apontou. - Ela, sim, é claro. Mas ele?

- Também pensei que nunca veria aquilo - disse Orm, fazendo um sinal na direção dos músicos. Entre vários aprendizes mais velhos, lá estava Andi, tocando e cantando diante de todos. Freydis teve uma exclamação de surpresa, depois sorriu, balançando a cabeça.

- Quem diria! Ele cumpriu a promessa de tocar, afinal!

- Assim como eu, com o bolo - disse Orm, e hesitou alguns momentos antes de prosseguir. - E você? Também vai cumprir sua promessa... e ir embora para conhecer os mares de Athelgard?

Freydis mordeu os lábios e não disse nada. Todo um mundo de possibilidades estava aberto à sua frente, e não queria voltar as costas a nenhuma delas. No entanto, desde que contara a história da menina-foca, o mar voltara a pulsar muito forte em suas veias, e ela fechou os olhos, quase conseguindo responder com certeza à pergunta do amigo.

Mas ainda não. Enquanto fosse tão jovem, tinha muito que aprender ali no Castelo, para que mais tarde essas coisas lhe servissem na vida de emoções e aventuras que esperava viver. Além disso, ainda havia muito para ela, ali mesmo, nos próximos anos: um tempo de semear perguntas e colher experiências.

E, é claro, fazer amigos.

Agora e para sempre, isso valia mais do que qualquer talismã.

....

E aí? Gostaram? Espero que sim, e que esse casamento os deixe curiosos... :)

Para conhecer a história anterior, contada em versos pelo Andi, clique aqui!.

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E fiquem atentos! Em breve, mais novidades chegando por aqui.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Talismãs (Parte 5: A Saga do Bardo Arrependido)


Entre as campinas e as matas,
Reino de vinhas e cascatas
Que alegram corações,
Ergue-se Kalket, a gloriosa,
A celebrada e tão famosa
Cidade das canções.

É lá que a arte se propaga
Dos bardos e mestres de sagas
Que cantam os Heróis.
Tão orgulhosos de espalhar
Por toda a Ilha de Athelgard
Sua música, sua voz.

Nessa cidade, um Conselheiro
De Casa antiga o nobre herdeiro
Uma esposa tomou.
Com flores recobriu as ruas
E todo o povo por três luas
Com ele festejou.

Para prestar sua homenagem
Um bardo fez longa viagem
Por terra, rio e mar.
Filho dos Elfos e dos Homens
Hyldor, o Belo, era seu nome.
E altivo o seu olhar

Eu tinha apenas nove anos.
Era um menino como tantos,
Com sonhos e ilusões.
Queria a glória e o esplendor.
Queria ser como Hyldor,
O mestre das canções.

Fui então vê-lo assim que pude
Com uma saga e um alaúde,
Mas não quis me escutar.
Só a si mesmo ele aprazia.
Sua própria voz o comovia.
Restava-me calar.

Mas – gesto digno de um nobre
Que atira moedas aos pobres –
Pensou melhor depois.
E me levou feito escudeiro
Até o solar do Conselheiro.
Entramos lá os dois.

Que claro céu! Tantas estrelas
Tornavam a festa ainda mais bela,
Mais belos os casais.
Todos dançavam nos jardins
Entre as roseiras e os jasmins,
Estátuas e portais.

Vendo chegar o bardo Hyldor,
A bela dama e o bom senhor
Com graça o receberam.
Deram-lhe vinho às taças cheias,
Iam ouvi-lo após a ceia,
Assim lhe prometeram.

E ele bebeu, comeu, dançou,
Por toda a noite festejou
Sem ter preocupações.
Enquanto eu, com outras crianças,
Ali ficava a ver as danças
E a ouvir novas canções.

Mas de repente em meus ouvidos
Soou um terrível gemido,
Um grito de assustar:
Ao cortejar uma criada,
Hyldor caíra da sacada,
Quebrara um polegar.

Correu um físico a atendê-lo,
E todo o tempo Hyldor o Belo
Ficou a lamentar.
“Vim de tão longe! Que mau fado!
Com o meu punho assim quebrado
Não poderei cantar!”

Porém Althea, a ilustre barda
Com quem eu tinha aulas de harpa
Logo se fez ouvir.
“Cante, Hyldor, não se preocupe!
E que da música se ocupe
O jovem Andi ap Llyr”.

E – adivinhem? – Eu toquei!
Hyldor cantou e o acompanhei
E todos aplaudiram.
Bardos e artistas nos louvaram,
Os senhores a nós brindaram
E as damas nos sorriram.

Mas o melhor veio no fim,
Ou pelo menos para mim,
Vejam vocês se não:
Arrependido do que fez
Ao me ver da primeira vez,
Hyldor pediu perdão.

Diante de todos os convidados,
Ele, uma lenda, um famoso bardo
Que encanta multidões,
Disse: “Esta noite, eu a devo a Andi!
Ouçam o que digo, ele será grande,
O herdeiro das canções.”

...

Um breve instante de silêncio se seguiu às últimas notas do alaúde. Então, como se todos houvessem combinado, irrompeu uma salva de aplausos, e estes aumentaram à medida em que o rosto de Andi enrubescia mais e mais.

- Bom, foi essa a história – disse ele, baixinho. – E o objeto está aqui. É a palheta que Hyldor me deu e que usei para tocar.

- Uma figura e tanto esse Hyldor! – exclamou Conan, com uma risada. – Ainda bem que se arrependeu. Eu faria o mesmo, se visse como você domina um alaúde.

- É verdade, mas me explique uma coisa, Andi – disse Adrael, estreitando os grandes olhos oblíquos. – Você foi lá falar com o bardo que não conhecia, depois tocou diante dos senhores de Kalket numa festa, sem vergonha nenhuma. Como fez isso, se em geral é tão tímido?

- É mesmo, Andi. Até para tocar aqui você relutou – observou uma das meninas mais velhas. – O que aconteceu para ter mudado tanto?

- Nada! Quer dizer, eu... Bom, passei por algumas coisas – confessou Andi, com o rosto em fogo. – Fiquei mais velho, o Dom se manifestou, então... Ah, mestra, por favor. – Ergueu os olhos aflitos para Anna de Bryke. – Eu fiz minha parte, não fiz?

- Claro que fez, e se saiu muito bem – sorriu a Mestra de Sagas. – Não precisa ir adiante se não quiser ou não estiver preparado. Existe até uma fórmula da escola bárdica para isso, alguém conhece?

Louras e morenas, as cabeças se moveram de um lado para o outro. Anna esperou um instante, criando expectativa, depois falou:

- Se alguém insiste em ouvir mais quando você já chegou onde queria chegar, somos ensinados a concluir: “Esta é uma outra história”. Nada mais.

- Que pena! Queria ouvir o Andi tocar de novo – lamentou Orm, sorrindo com malícia para o amigo. – Quem sabe um outro dia, não é?

- Num outro casamento – disse Freydis, passando o braço pelo ombro de um Andi aliviado, mas ainda vermelho.

E como sempre tinha de falar por último, acrescentou, devolvendo o riso de Orm:

- Mas só se nele for servido o seu incrível pão de fruta.

Para conhecer a história anterior, contada pela Freydis, clique aqui!.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Talismãs (Parte 4: A Saga da Menina-Foca)


Antes de começar: prefere ouvir esta história narrada por mim? Clique aqui. Se prefere ler, é só seguir em frente!

.....

Desde que eu era bem pequena ouvi dizerem que tenho o mar nas veias.

Essa é uma herança de meu pai. Ele é um navegador, viajou por todos os mares de Athelgard até conhecer minha mãe. Por ela, decidiu ficar em terra e acabou vindo parar em Vrindavahn, mas antes moramos em pelo menos dois lugares. E, claro, visitamos muitos outros, inclusive uma aldeia muito distante onde vivem nossos parentes.

Eu tinha só uns quatro ou cinco anos e não lembro os detalhes da viagem. Lembro que ia ficando cada vez mais frio, o mar cada vez mais agitado à medida em que viajávamos. Meu pai estava ansioso para encontrar a família, principalmente sua tia Freydis, em honra de quem foi dado o meu nome. Ele falava tanto nela que eu achei que estaria nos esperando no cais, mas lá só havia alguns homens, vestidos e armados como soldados e segurando tochas. Meu pai disse que eram guerreiros que serviam a seu tio e que ele era uma espécie de nobre, mas seus domínios eram pequenos. Só uma aldeia com algumas fazendas e uma fortaleza de madeira. De um lado ela era cercada por uma paliçada de troncos, mas a maior parte das terras se abria para o mar, e era dele que o povo costumava tirar seu sustento.

Muitas pessoas moravam na fortaleza, e eu as conheci ao longo da visita que durou umas duas luas. Lembro de muitos rostos, mas os nomes se confundem na minha memória, exceto o da tia-avó Freydis. Ela era diferente de todos, e as coisas que me disse eu vou guardar para sempre, junto com a lembrança da aventura que vivi no mar.

Era uma tarde quente de verão e eu estava na praia, vigiada por uma das moças que serviam na fortaleza. Dessa guardei o nome: Elín. Tinha cabelo ruivo, muitas sardas e um namorado que sempre aparecia quando só estávamos nós duas. Os dois sentavam numa pedra e se beijavam enquanto eu catava conchinhas ou fazia bolos de areia. Foi o que aconteceu naquela tarde, com uma diferença: no dia anterior, Elín tinha sido vista falando com outro rapaz, e isso resultou numa briga que assustou até as aves marinhas.

Eu não fiquei assustada, mas sim irritada e contrariada com a gritaria dos dois. Queria que parassem, tentei chamar a atenção de Elín, mas ela nem sequer me olhou. Então virei as costas para eles e me afastei, escalando umas rochas baixas para ver se de lá enxergava algum barco se aproximando do cais.

Foi então, sobre as pedras que entravam mar adentro numa curva da praia, que eu a vi. Era uma menina alta, mais velha do que eu e magrinha, mas o que causava espanto era ela não usar roupas. Nenhuma roupa, e ali não era um lugar onde normalmente as crianças iam nadar. Ela saltava de uma pedra para outra como se estivesse dançando, e foi numa dessas reviravoltas que ergueu a cabeça e me viu.

Na mesma hora, pareceu ficar toda animada e começou a fazer gestos me convidando para ir até lá. Eu tinha sido avisada para não me afastar muito, mas ainda estava perto o bastante para que Elín pudesse me ver, e além disso achei que não havia perigo. Se as pedras eram seguras para a outra garota, deviam ser também para mim.

O mar parecia mais azul do outro lado da praia. A menina estava à minha espera e parecia tão feliz quanto eu por encontrar uma amiguinha. Ela me deu a mão e entramos na água, deixando que as ondas nos pegassem e levassem para além da arrebentação.

Ficamos lá por um bom tempo, nadando, brincando e rindo tanto que nem perguntamos o nome uma da outra. A menina era incansável, mergulhava sem parar e tinha muito fôlego. Eu tentava acompanhá-la o melhor que podia, sem mostrar o quanto estava começando a ficar cansada.

Depois de muitas brincadeiras, minha amiga apontou para umas rochas mais distantes e sugeriu que nadássemos até lá. Não lembro se ela disse alguma coisa - acho que nos entendíamos por gestos - mas de qualquer forma eu relutei, porque estava pensando em voltar para junto de Elín. Àquela altura ela já devia ter acabado de brigar com o rapaz. Poderia me levar no colo até a fortaleza e me aprontar para jantar no salão.

Eu disse isso à garota do mar, mas ela não pareceu ter me escutado. Feito um peixe, começou a dar mergulhos rápidos e nadar à minha volta, às vezes vindo por baixo e me empurrando, às vezes me puxando pela mão. Por fim, acabei indo com ela, mais flutuando que nadando em direção às rochas. Elas ficavam no meio do mar, e a maré foi subindo à medida em que avançávamos, de forma que, quando chegamos, só havia uma pequena parte de fora. Eu estava morta de cansaço e me estirei ali, mas logo tive de sentar, pois a maré continuava a subir e a engolir a rocha. E assim que isso aconteceu compreendi que não conseguiria nadar de volta à praia.

Minha amiga brincava por perto, mas se aproximou quando notou como eu estava aflita. Em suas mãos havia uma concha como eu nunca tinha visto antes, com uma espiral perfeita e cor de madrepérola, e ela a prendeu em meu cinto enquanto eu lutava para me manter na superfície. Depois, fez gestos indicando que devíamos nadar, mas meus braços não me obedeciam. Todo o meu corpo parecia pesado. Ela se afastou, olhando-me de um jeito sério, e eu ainda lutei um pouco, mas não consegui me impedir de afundar e engolir um bom gole d´água.

Aquele foi o pior momento da minha vida, mas acabou rápido. Mal tinha começado a me debater, a menina mergulhou por baixo de mim, levou-me para a superfície e me segurou até eu recobrar o fôlego. Então começou a nadar, mas não me puxou, nem me abraçou pelo pescoço como se faz com as pessoas que se afogam. Em vez disso, ficou por baixo de mim, sustentando meu peso com as costas enquanto ela mesma ficava afundada na água.

Avançamos bastante desse jeito antes que ela tivesse de respirar. Então, ergueu a cabeça, e nesse movimento vi seus olhos de perto. Eram castanhos e redondos, grandes demais para aquela cara de menina. Ela voltou a afundar a cabeça e a nadar, não mais batendo braços e pernas e sim ondulando o corpo. Isso me fez pensar de novo num peixe, mas o que ela era de verdade eu só descobri quando tornou a tirar a cabeça da água. Isso me deixou mais uma vez diante dos seus olhos, que eram como antes, escuros e redondos; mas já não pareciam tão grandes, porque não estavam no rosto de uma menina e sim na cara cinza e sorridente de uma foca.

Não acreditam, não é? Pois bem, façam as trouxas e vão embora do Castelo, parem de gastar o tempo dos nossos mestres! Há muitas coisas maravilhosas neste mundo, coisas que poucos veem, e futuros magos devem ser os primeiros a ter a mente aberta. Se estou dizendo que era uma foca, era uma foca, e ninguém tem por que duvidar.

Se bem que eu mesma levei um tal susto que quase desmaiei.

Quando criei coragem para olhar, vi que não estava mais nas costas de uma garota e sim nas de uma foca, de corpo longo e pelo lustroso. Além disso, notei que tínhamos mudado de rumo, deixando a praia para trás e avançando para dentro do mar. Gritei, apavorada, e tentei me agarrar ao corpo da foca, mas ela deu uma virada brusca que me atirou na água... e com isso me fez ver o barco que vinha rápido em minha direção. Eram homens da aldeia, que se apressaram a me recolher e a me embrulhar num manto seco antes de remar a toda pressa para a fortaleza. Procurei no meio das ondas, enquanto se afastavam, e vi a foca, os olhos grandes me encarando pela última vez antes que ela mergulhasse e sumisse para sempre.

Minha chegada causou muita comoção. Elín tinha dado pela minha falta e avisado a meu pai, que pôs uns vinte homens à minha procura. Só regressaram à noite, e a essa altura eu já tinha contado a história mais de cem vezes. Algumas pessoas duvidaram, mas a maioria acreditou, pois já tinham ouvido falar de moças-foca e mulheres-foca vivendo na região. Todos disseram que tive muita sorte, e a tia-avó Freydis decidiu fazer uma espécie de ritual, agradecendo ao mar e às focas por terem me devolvido em segurança. Foi parecido com o que fazem no Templo para Aegir Barba-de-Espuma, mas o conduzimos na praia, à luz da lua, de estrelas e de tochas acesas. Isso tornou a cerimônia muito mais bonita.

Quando terminou, meus pais foram andando na frente com os homens das tochas, enquanto eu ia atrás com minha tia-avó. Eu tinha mostrado a ela a concha que ganhei da menina-foca, e ela havia me pedido que a levasse para a praia, mas até agora não voltara a falar nisso. Foi só quando ficamos sozinhas que ela disse para eu pôr a concha no ouvido e escutar os sons lá dentro. Eu tinha feito isso antes e sabia que ia ouvir o vento e o mar, mas ela afirmou que havia mais, bastando que eu me concentrasse – e quando fiz isso, eu juro, lá bem no fundo percebi um riso de menina.

- O mar foi generoso com você – disse a tia-avó Freydis – e sua amiga lhe deu um presente. Guarde-o para sempre, pois essa concha é a prova de que você é bem-vinda para se aventurar nas ondas. E um dia, quem sabe, conhecer os mistérios do oceano mais profundo.

E foi o que eu fiz. Guardei a concha, que agora mostro a vocês, mas sobretudo guardei a lembrança daquela tarde e as palavras da minha tia-avó. Vim para esta Escola de Magia, mas o que pretendo é conhecer a natureza, a alma de todas as coisas que existem no céu e na terra. Quando crescer, quero poder pular num barco, navegar os oceanos mais distantes e desvendar todos os seus segredos.

Porque eu tenho o mar nas veias e sou amiga da menina-foca.

E hei de me aventurar longe o bastante para reencontrá-la.

.....

Em breve: a narrativa de Andi. Não deixe de passar aqui, pois será contada de forma especial.

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segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Talismãs (Parte 3: A Saga do Padeiro Aprendiz)


Essa história aconteceu algumas luas depois de eu entrar para a Escola de Artes Mágicas. Não é tão emocionante como a da Mestra Anna, mas é engraçada. Bom, pelo menos eu acho.

Todos conhecem a cerveja fraca que a gente toma nas refeições, mas não sei se notaram que aparece uma melhor nos dias de festa. Eu a provei no solstício de inverno e fiquei louco para repetir, mas o Nils Cocheiro me explicou que a bebida é cara e reservada a ocasiões especiais. Até mostrou onde ela é guardada: não em barris, como a cerveja comum, e sim em vasos de pedra, num telheiro ao lado da cozinha. E ninguém podia ir lá sem ordem do intendente, ou então da Netta, a cozinheira da Escola.

Eu teria me conformado e esperado pela próxima festa se não fosse pelo Ardaval. Alguns aqui devem lembrar dele: era um garoto do norte, mais velho do que a gente, que nessa época lutava para entrar no Segundo Círculo. Acabou desistindo, e agora deve ser um escudeiro ou coisa assim, mas isso não vem ao caso: ele estava comigo quando o Nils me mostrou os vasos da cerveja. Vendo que ficavam em lugar aberto, cismou de ir lá no meio da madrugada e tomar um pouco, e me chamou de medroso quando eu disse que não devíamos quebrar as regras.

Ora, sou filho, neto e sobrinho de militares. No exército aprendem a obedecer às regras, e foi o que me ensinaram em casa. Mas também me disseram para reagir quando fosse provocado e aceitar os desafios. Foi assim que aceitei o de Ardaval.

Nós escolhemos uma noite de lua nova para ir ao telheiro. Tínhamos de passar pela cozinha, e esperávamos achar tudo às escuras; mas para nossa surpresa o fogo estava aceso, e em cima da mesa havia um monte de pratos de dar água na boca. Uma salada enfeitada, carnes frias, queijos e um pão de fruta delicioso. Não sabíamos para quem era tudo aquilo, mas, no espírito da aventura, nem conversamos. Sentamos ali e começamos a comer. E de repente... toc, toc, toc, começamos a ouvir os passos de várias pessoas se aproximando pelo corredor.

Já adivinharam? Pois é. Às vezes, de acordo com o calendário dos astros, os sete mestres da Escola que são magos se reúnem para rituais a portas fechadas. Muitas dessas vezes eles estão em jejum, e, quando saem, vão comer uma ceia deixada pronta na cozinha. Sabíamos disso, mas na hora nem pensamos: antes mesmo de ver quem era tratamos de correr e nos esconder no telheiro, por trás dos vasos, de onde se podia ver quem entrava na cozinha.

Então, eles chegaram. Primeiro as três mestras, Lara, Thalia e Sophia; depois, Mestre Finn e Mestre Algias; por último, o Carrasco - quer dizer, Mestre Kieran - todo paramentado com os trajes rituais. Só o Mentor não veio. Eles viram o que tinha acontecido com a comida e é claro que não ficaram contentes, mas não conseguimos ouvir o que falavam. Eu disse ao Ardaval para a gente fugir, mas ele ficou parado, com medo de fazer barulho - e aí veio a voz do Mestre Kieran, alta e muito zangada, dizendo que sabia que o autor da proeza estava por ali e que se apresentasse para ter o que merecia.

Ardaval tinha desafiado as regras da Escola, mas nem pensou em fazer o mesmo dessa vez: foi para lá correndo. Eu devia ter ido também, mas não fui. Pouco depois Mestre Kieran tornou a chamar, ainda mais zangado, dizendo que sabia que tinha mais um. E mesmo assim eu, feito um bobo, decidi arriscar e dar o fora dali.

Então... Bom, nem houve um então, para dizer a verdade. Quando mal tinha me virado para correr, senti como se alguém tivesse me agarrado pela gola da túnica. Era como uma mão muito forte, e outra logo depois me deu um puxão no cinto, e essas mãos invisíveis foram me arrastando. O pânico foi tão grande que eu nem consegui gritar, só me debater, tentando escapar do que eu já achava que ia ser um castigo terrível. Assim fui seguindo, meio arrastado, meio carregado até a cozinha, e as mãos só me largaram quando eu estava... adivinhem?

Isso mesmo: na frente de Mestre Kieran. Ele estava sentado de braços cruzados, sem dizer uma palavra, me encarando com aquele risinho torto que ele sempre dá nas horas piores. Os outros mestres estavam sentados também, e Ardaval de pé, com o rosto vermelho de vergonha. O meu, lembro bem, estava queimando. Mas não havia mais nada que a gente pudesse fazer.

Depois de um tempo de silêncio, Mestra Thalia nos mandou contar a nossa história. Falamos a verdade - que tínhamos ido roubar cerveja e não resistimos a provar daquela comida - e ela disse que, já que tínhamos confessado, nosso castigo seria leve. Primeiro, teríamos que pegar mais frios, queijo e vinho na despensa, e servir a ceia deles, além de ficar lá até o fim para limpar tudo; e durante um quarto de Lua íamos ajudar a servir o jantar dos aprendizes.

Isso não parecia tão ruim, mas aí Mestre Kieran rosnou que a minha punição tinha que ser maior, porque eu não tinha atendido quando ele chamou. Tive esperança de que Mestra Thalia não concordasse, mas ela encolheu os ombros, então ele perguntou o que eu tinha gostado mais ali da mesa. Respondi que do pão de fruta e ele disse que, nesse caso, eu ia ficar de ajudante de cozinha, chegando lá à quinta hora da manhã, e aprender a fazer o pão. Ele ia provar todos que eu fizesse. E o castigo só ia terminar quando ele achasse que estava gostoso.

Imaginem como foram os dias seguintes. Fiquei uma Lua inteira indo bem cedo à cozinha, areando panelas, mexendo mingau e praticando com a massa do pão. Ele é feito todos os dias, e, acreditem, não é nada fácil sovar uma quantidade de massa que alimente uma Escola inteira. Eu tinha até vontade de chorar. Além de tudo tinha sono, ficava cansado para as aulas, até que comecei a ir dormir mais cedo e essas horas compensaram as outras.

Para resumir, no início foi muito ruim. Depois, por incrível que pareça, acabei gostando. A cozinha é muito divertida. É muito trabalho, sim, mas a gente ri e brinca o tempo todo. Além disso, fiquei amigo da Netta e do resto do pessoal, e vocês sabem... Todos são bem alimentados aqui no Castelo, mas na cozinha sempre aparecem umas guloseimas diferentes. E se você estiver por lá, sorte sua!

E houve uma outra coisa boa nisso tudo. Como quase todos no Primeiro Círculo, eu morria de medo do Car... de Mestre Kieran, mas falei com ele várias vezes ao longo daquela lua. No início ficava apavorado, ainda mais porque o pão que eu fazia saia duro feito pedra, mas ele não se zangava. Só balançava a cabeça e dizia para eu continuar tentando. Depois de um tempo começamos a trocar umas palavras, e acabei simpatizando com o homem. Acho que isso vai tornar as coisas mais fáceis quando ele for meu professor no Segundo Círculo.

E é isso, pessoal. Essa é a história. Foi duro, no começo, mas no fim a experiência foi boa. Até lamentei um pouco quando tudo acabou. E a Netta também. Ela diz sempre que, como mago, não sabe se eu sou bom. Mas fui o melhor aprendiz que já passou pela cozinha.

...

Concluído seu relato, Orm apresentou o objeto que guardara como lembrança. Era uma colher de pau, com a ponta lascada, impregnada com um leve cheiro doce. As crianças a passaram de mão em mão, e enquanto o faziam Anna se dirigiu ao contador de histórias.

- Foi uma ótima história, Orm. O problema é que me deixou com vontade de comer pão de fruta. Quando vai fazer um para mim?

- Quando quiser, mestra, mas não ficou assim tão bom – disse o menino, com as faces vermelhas. – No último, Mestre Kieran disse que estava passável, que ia me liberar porque não aguentava mais aquilo e só tornaria a comer pão de fruta quando se casasse.

- Por quê? – indagou Anna, e dessa vez foi ela que corou um pouco. – O que isso tem a ver com o casamento?

- É que os noivos têm de comer do mesmo pedaço de pão de fruta na cerimônia. É uma tradição – explicou Andi. – Quer dizer que eles vão sempre partilhar o que tiverem, seja muito ou pouco.

- E por falar nisso, por que não conta aquela história sobre o casamento em Kalket? – perguntou Freydis. – É uma boa história.

- Mas você já sabe – replicou o menino. – Que graça teria ouvir de novo?
- Eu vou achar graça. E os outros não sabem, só Orm e eu – insistiu Freydis. – Vá lá, deixe de ser tímido. Conte a história.

Hesitantes, os dedos de Andi se juntaram sobre o colo. Podia sentir os olhos dos colegas sobre ele, cheios de expectativa, os de seus amigos transmitindo uma mensagem de encorajamento. Anna esperava, sem querer apressá-lo, um sorriso caloroso nos cantos dos lábios. Por fim, ele encontrou um jeito de lidar com o problema.

- Eu preferia que a Freydis contasse. Ela veio preparada – argumentou. – Trouxe o objeto dela para o encontro, e eu não estou com o meu.

- Por mim está bem – disse Anna. – Que acha, Freydis?

- Certo. – Freydis se levantou, limpando a garganta, e alisou as dobras da túnica. – Já que o Andi prefere esperar, eu conto logo para vocês a minha história. Não pensei num nome para ela. Mas pode ser alguma coisa como... A Saga da Menina-Foca.

Em breve! E para conhecer a história contada pela Anna, clique aqui!

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Talismãs (Parte 2: A Saga da Caçadora Ingênua)


Todos nós, quando olhamos uns para os outros, vemos pistas que conduzem à história de cada um. A minha pode ser lida nos calos que tenho nas mãos: os da pena de escrever, resultado de vários anos de aprendizado das sagas, e os de puxar a corda do arco, que endureceram aos poucos desde que eu era menina. A avó que me criou, de quem herdei os olhos de elfo, liderava um grupo de caça na Floresta dos Teixos. Eu costumava acompanhá-la, mas depois passei a sair apenas com os jovens da minha idade. Foi numa dessas ocasiões que tudo aconteceu.

Era um inverno frio, mais frio do que podem imaginar os que nunca saíram das Terras Férteis. Havia neve em todos os caminhos e sobre os tetos das casas, e a água do Rio da Lontra estava cheia de pedacinhos de gelo. Muitos de nós dormíamos de parka, o agasalho pesado que usávamos, pois se o vestíssemos de manhã o acharíamos duro como madeira. E todos preferíamos ficar no interior das cabanas a ter de nos aventurar no mundo branco lá de fora.

Eu estava saindo pouco, em parte por causa do frio, mas também porque assumira vários deveres. Maryan, minha mestra, tinha dado à luz seu segundo filho, e eu a ajudava com a mais velha, preparava sua comida e buscava lenha. Em tempos mais calmos isso caberia ao pai das crianças - meu primo Zendak - mas nesses dias ele tinha preocupações maiores. As reservas de carne da tribo estavam diminuindo, e como nosso xamã era ele que tinha de guiar os caçadores até a presa. Ele ficava o tempo todo em sua cabana, no alto da árvore mais antiga da floresta, e os jovens da Casa do Corvo se revezavam para zelar por seu corpo enquanto o espírito fazia longas jornadas. Ao regressar, dizia onde podia haver um gamo ou um javali; os caçadores seguiam as pistas, mas quase sempre voltavam de mãos vazias.

Numa daquelas tardes, aproveitei a chegada de amigos que fariam companhia a Maryan e fui à casa de um outro primo, que tinha um filho da minha idade. Os pais tinham saído com o grupo de minha avó, mas Tyshen recebera a ordem de ficar e se ocupar de algumas tarefas do tipo que todos detestávamos fazer. Querendo animá-lo, ofereci ajuda, e nós nos sentamos na frente da casa, costurando peles de veado enquanto conversávamos.

Estávamos nisso quando um grupo de jovens apareceu na trilha que levava à casa do xamã. Dois eram um pouco mais velhos que nós e já considerados adultos, membros da Casa do Lobo; os outros eram garotos e garotas da nossa idade. Eles contaram que Zendak tinha despertado por uns momentos e falado sobre um grande cervo que errava procurando comida num bosque de bétulas, um pouco ao norte de onde ficava a nossa aldeia. Não ia ser difícil pegá-lo, mas tínhamos de ser rápidos – e o “tínhamos”, nesse caso, se referia a nós mesmos, pois todos os caçadores se achavam fora de alcance.

A perspectiva nos entusiasmou, e Tyshen entrou rápido para pegar suas lanças e a faça de caça. Também corri até minha casa, que não era longe, peguei meu arco e uma aljava de flechas recém-emplumadas, mas não vesti perneiras nem calcei as botas de pele. Isso aconteceu em parte pela pressa, mas em parte por uma espécie de rebeldia: a maioria das pessoas usava botas na neve, mas podiam sair de mocassins se não se importassem com os pés molhados. Já eu não tinha escolha: ou calçava as botas ou minha avó se recusava a me levar para a floresta. Eu já tinha perguntado a razão, mas a peguei num dia de mau-humor e não tive resposta, por isso achei que fosse apenas um dos cuidados que Kyara tomava para me proteger. E para que essa proteção, se eu tinha treze anos, era quase uma adulta recebendo a tatuagem do Lobo? Saí de mocassins.

Uma trilha bem marcada conduzia ao bosque de bétulas. O chão tinha restos de neve e fiquei com os pés úmidos, o mesmo acontecendo com outros de nós que não tinham calçado as botas. Pelo meio do caminho sentimos que o vento virou, o que devia nos servir de alerta: não demoraria a nevar. Mesmo assim, nos sentimos encorajados a prosseguir, ainda mais quando chegamos ao bosque e vimos o rastro deixado pelo cervo. Estava bem fresco e o seguimos com facilidade, sempre em direção ao norte, mal percebendo os primeiros flocos de neve que caíam sobre os ombros e os capuzes das parkas. Logo se transformaram em rajadas. Tivemos medo de que isso apagasse os rastros e apertamos o passo, sem perceber que estávamos nos afastando das trilhas conhecidas.

Já estava escuro quando enfim avistamos o cervo. Meus pés estavam molhados, muito mais do que em qualquer outra caminhada na neve, mas, envolvida com a caçada, não percebi que haviam começado a latejar. Cercamos a presa, andando sempre contra o vento, e quando estávamos a uma distância razoável atiramos, vários ao mesmo tempo e mirando os pontos vitais. Felizmente, já éramos bons o bastante para acertar de primeira - e, enquanto alguns de nós cumpriam os ritos, entoando um canto em homenagem ao espírito do animal que dera a vida por nós, outros já começavam a prepará-lo para a viagem de volta. Era um cervo pesado demais para ser carregado e não tínhamos trenós, de modo que o melhor jeito foi esfolá-lo e cortá-lo em pedaços que, depois, pusemos nos ombros. Fiquei com um dos maiores, porque todos sabiam que eu era a mais forte do grupo, e até aí nada demais; o que não sabíamos era de uma outra diferença, que começou a se fazer sentir assim que tentamos reencontrar a trilha. Porque meus pés, que tinham latejado, depois ficado doloridos e por fim se tornado insensíveis, estavam agora como dois blocos de madeira, que eu mal conseguia sentir ao encostá-los no chão.

Ainda me lembro da expressão dos meus amigos nesse dia: como ficaram desamparados, e como senti tanta pena deles quanto imagino que sentiram de mim. Eu era diferente de todos, tinha curvas e pelos onde eles não tinham, mas nunca imaginaram o estado em que podiam ficar meus pés até que eu tirasse os mocassins. Estavam inchados, com cor e aspecto estranhos e também estranhos ao toque, embora eu não sentisse os dedos deles pressionando minha carne. Era assustador. Mesmo assim, alguma coisa tinha de ser feita, e discutimos o que seria melhor: acender um fogo para aquecer meus pés ou regressar o quanto antes à aldeia. E como não tivéssemos madeira seca nem um lugar para nos abrigar da neve, que caía cada vez mais forte, escolhemos a segunda opção. Isso me levou a andar boa parte da noite amparada por dois amigos, com os pés que eu mal conseguia sentir enrolados na camisa de Tyshen e protegidos por fora com cascas de bétula.

Isso salvou meus pés.

A dimensão do que tinha acontecido eu só soube depois, quando os cuidados tinham sido tomados, por isso não entendi o desespero de minha avó quando me viu entrar em casa. Ela também mal acabara de chegar, vira minhas botas em um canto, mas não se preocupara porque achava que eu estava com Maryan. Por outro lado, minha prima fora informada por algumas crianças de que eu tinha ido à floresta, mas não sabia sobre as botas, ou poderia ter me avisado sobre o que aprendera ao ler as sagas dos homens: é que, ao contrário dos elfos, nós não apenas podemos sentir frio, mas podemos ser congelados por ele, assim como congelamos a carcaça de um animal sob a neve. Por causa do frio, podemos até perder uma parte do corpo, como minha avó já vira acontecer. Felizmente, ela também sabia o que devia ser feito - e assim aqueceu água e mergulhou meus pés, e depois de novo e de novo, e não deixou que ninguém os esfregasse nem acendesse um fogo muito próximo. Isso teria sido um desastre. Zendak, que despertou de vez na manhã seguinte, preparou um unguento que aliviou a dor, e assim tratamos as queimaduras até que elas sarassem. Tudo que restou foram as marcas, além de um renovado respeito pela neve e pelos conselhos e cuidados de minha avó.

Eu disse “tudo”? Bem, não foi só isso. Além da carne, que foi consumida por todos, e das cicatrizes, guardei uma outra lembrança dessa caçada. Toco nele quando sinto que meu dia-a-dia me aproxima demais dos elfos, fazendo-me esquecer de que sou humana. Mas acho que será mais fácil me lembrar disso numa cidade como Vrindavahn.

...

As palavras de Anna foram recebidas em silêncio. Em todo o semicírculo, os olhos deslumbrados das crianças estavam presos nela, acompanhando suas mãos, que abriam uma pequena bolsa de pele macia. Dali a Mestra de Sagas retirou um outro pedaço de couro, duro e enegrecido, que confiou à posse curiosa do aprendiz mais próximo.

- É um pedaço do mocassim que usei na caçada – explicou. – Está nessa bolsa junto com outros objetos que foram e são importantes, não apenas como talismãs, mas porque ajudam a contar minha história. E agora eu tenho uma proposta para vocês – acrescentou, relanceando os olhos por todo o grupo. – A partir do próximo encontro, quem pode trazer alguma coisa que considere importante e contar a história que tem por trás? Que tal começar por vocês aqui à direita?

- Nós? – Andi olhou assustado para Orm e Freydis, querendo confirmar que era com eles.

- Vocês mesmos. Ficaram bem interessados pelo que vi, e todos têm jeito de que gostam de contar histórias. Então, o que acham?

- Eu concordo! - exclamou Freydis.

- Eu também – disse Orm. – E posso ser o primeiro. Mas não esperem uma história tão boa – avisou, voltando-se para os demais aprendizes. – Não sou nenhum mestre de sagas. Só um filho de militar que nunca saiu de Vrindavahn.

- E que adora comida e cerveja – disse Andi, com uma risadinha.

- E a história vai ter tudo isso – prometeu Orm, com ar solene. – Esperem, que vocês vão ouvir... A Saga do Padeiro Aprendiz!

Em breve! E se quer saber como começou essa contação de histórias, clique aqui!

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Talismãs (Parte 1: A Nova Mestra de Sagas)


As crianças foram chegando como quem não quer nada. Era uma tarde clara de primavera, e os jardins da Ala Amarela estavam floridos, desprendendo nuvens de pólen que flutuavam no ar. Andi passou entre dois canteiros e espirrou, provocando risos que serviram para aliviar a tensão da expectativa. Ninguém sabia muito bem o que estava por vir.

- De qualquer jeito, aposto que ela vai ser melhor do que o Shanion – Freydis sussurrou ao ouvido de Orm, que caminhava ao seu lado. – Eu sei que ele é um bom Mestre de Sagas, mas não saía daqueles poemas intermináveis. E além disso estava sempre com a mesma cara, como se estivesse morrendo de tédio.

- É, por esse lado acho que será melhor – disse Orm, com os olhos voltados para a moça sentada numa esteira sobre a grama.

Morena, vestida de linho creme e com os cabelos presos numa trança, Anna de Bryke sorria para os aprendizes. Os primeiros a chegar a cumprimentaram e ficaram de pé, sem saber se deviam entrar na sala usada por Shanion. Suas portas estavam abertas às costas da nova mestra. Ela, porém, os convidou a se acomodar ali mesmo, e após hesitar por um instante eles começaram a arrumar as esteiras e almofadas que Anna trouxera para o jardim. Havia livros também, mas estavam fechados; quando os últimos alunos chegaram, apertando-se contra os colegas para ocupar as pontas das esteiras, ficou patente que iriam começar por uma conversa, e que esta seria bem menos formal do que a apresentação feita por Mestra Lara no primeiro encontro.

- Bom, pessoal, já nos conhecemos, mas esta é a primeira vez em que estamos realmente juntos. – A voz era calma, com timbre agradável e um leve sotaque do Norte. – Nestes dias, pensei muito no que ia lhes dizer e em como conduzir nossos encontros. Mas não sabia por onde começar, até que vi o trabalho dos artistas na festa de Primavera... e percebi onde se encontra a alma de tudo.

Freydis ergueu as sobrancelhas e tornou a olhar para Orm. Este encolheu os ombros: também não tinha entendido. Outras crianças se entreolharam, algumas perplexas, outras parecendo perguntar onde aquilo os levaria. Anna percebeu sua inquietude e sorriu, um brilho bem-humorado nos olhos escuros e oblíquos.

- Vamos partir do início. O que é uma saga? Pode responder – disse, dirigindo-se a Arton, o primeiro dos vários que tinham erguido a mão.

- Mestra, uma saga é uma história, pode ser também um poema, que conta os feitos de heróis ou dos nossos antepassados – disse o pequeno elfo. – Algumas são verdadeiras, como a das Onze Cidades. Outras se misturam com lendas e trazem símbolos que temos de analisar para entender. Isso é uma saga, mestra.

- Ótimo. Resumiu muito bem. Mas, partindo daí, quem pode me dizer por que as sagas só falariam de heróis e antepassados? Por que não de nós mesmos e do que acontece aqui e agora?

Um murmúrio se elevou como uma nuvem sobre as crianças. Anna se demorou a observar seus rostos, tão diferentes uns dos outros – queixos pontudos de elfo; bochechas humanas, pálidas ou rosadas; olhos de todos os formatos e matizes – e tão iguais na expressão que faziam ao se concentrar em busca da resposta. Por fim, a meio-elfa Lysia de Ardost se aventurou devagar, como quem pisa em solo desconhecido.

- Sagas são histórias antigas. Têm significado, não são simples como as coisas que acontecem conosco.

- Ah, não? Então o que fazemos não tem significado? – Anna provocou. – Vocês estão aqui hoje, mas um dia serão magos e magas de quem se esperam grandes feitos. Ninguém irá contar a sua história?

- Bom, então sim, mas...

- Eu entendi, mestra! – exclamou Conan, um garoto humano de cabelos castanhos. – As histórias que acontecem conosco podem um dia virar sagas, se ganharmos fama. É isso, não é?

- Mas e se não ganharmos? – A pergunta brotou espontânea dos lábios de Freydis. – Se formos pessoas comuns, dessas que vemos por aí. Nossas histórias não têm significado?

- Claro que não – disse Conan.

- Claro que sim! – contestou o elfo Adrael.

- Eu também acho que sim, mas que isso não é o bastante para se transformar numa saga – opinou Orm. – Sagas têm de ter heróis, batalhas, traição, Magia...

- Mas isso sempre há – disse Anna, sua voz se sobrepondo ao burburinho que começava a surgir entre os aprendizes. – Toda vida contém emoção – batalhas que travamos para nos superar, para conseguir o que queremos – e, de certa forma, toda vida contém Magia. Basta olhar para a Natureza à nossa volta.

- Mestre Rydel diz isso – lembrou Lysia. – O Mentor também.

- E têm razão. Não importa quem a gente seja – afirmou a Mestra de Sagas. – Todos temos nossas histórias e nelas somos os heróis. Quem pode nos contar uma sua?

O burburinho cessou de imediato frente ao desafio. Freydis olhou para Orm, que coçava a cabeça, depois para Andi, cujos olhos arregalados estavam fixos na mestra. Então, voltou-se para Conan e Arton, o humano e o elfo sempre prontos a tagarelar sobre o que quer que fosse. Mas dessa vez nem eles se dispunham a falar.

- Ninguém? Bom, então eu vou começar – disse Anna, cruzando as pernas. – Vou contar uma história que se passou comigo. E pode ser... hum, vejamos...

- O que você está olhando? – sussurrou Freydis, vendo a expressão de Andi como que congelada.

- Os pés dela – articularam, sem som, os lábios do meio-elfo. A menina franziu a testa e acompanhou seu olhar. Só então, com um choque, viu o que ele via: a pele mais escura, de aspecto áspero, em alguns dedos e no peito de um dos pés morenos e descalços de Anna.

- Pare de olhar assim – sussurrou Freydis, embora não tão baixo a ponto de não ser ouvida por Orm na outra metade da esteira.

- Os pés? Já tinha visto. Ela deve tê-los queimado – disse ele.

- Não, não os queimei – disse Ana, gentilmente.

Orm sentiu um abismo se abrir embaixo dele. Andi baixou a cabeça, vermelho até as orelhas, e começou a balbuciar um pedido de desculpas, que a mestra interrompeu com um gesto despreocupado.

- Marcas e cicatrizes fazem parte de quem somos – disse. – Na maioria das vezes, não há por que ter vergonha.

- E como aconteceu, Mestra Anna? – ousou Freydis, sentando-se bem ereta. – Se não queimou os pés, como foi que ficaram assim?

- Boa pergunta – sorriu Anna de Bryke. – E dá uma boa história. Pois bem, prestem atenção, pois eu vou lhes contar... a Saga da Caçadora Ingênua.

Curiosos? Aguardem o próximo post! :)

terça-feira, 3 de julho de 2012

Freydis, Andi e Orm


Ao chegar ao Castelo das Águias, Anna se depara com três desafios. O primeiro, proposto por Kieran de Scyllix, é entender a complexidade do lugar onde passou a viver; o segundo é entender, hum, o próprio Kieran. Já o último se refere a adaptar suas experiências e seu conhecimento a fim de se tornar a Mestra de Sagas da Escola, o que não é tão fácil. Felizmente há uma coisa a seu favor: a boa recepção que Anna tem por parte de seus aprendizes, principalmente estes três.

Freydis é a única menina da Escola que não tem sangue élfico. É alegre, decidida e gosta de aventuras, tendo para isso o estímulo de seu padrasto, o Conselheiro Thorold de Grimdale, que ela acredita ser seu verdadeiro pai. Ao visitarem a floresta e presenciarem a metamorfose das águias, Freydis dá a Anna uma pena dourada, que mais tarde servirá à Mestra de Sagas como um talismã.

Andi é o mais quieto do grupo e às vezes um pouco hesitante, mas tem uma ótima memória para as sagas. Meio-elfo, ele faz parte do grupo que considera Kieran um carrasco, mas, dos três amigos, é aquele que tem mais desenvolvido o Dom da Magia.

Orm pertence a uma família de militares e é neto do Comandante Owen, que está à frente da guarnição de Vrindavahn. É um garoto ativo e determinado, que gosta de atirar com arco e presta muita atenção a tudo que vê. Seu avô tem dúvidas sobre deixá-lo continuar no Castelo ou enviá-lo à Escola de Guerra em Scyllix, mas o impasse não se resolve no primeiro livro da série.

Ainda é cedo para saber se algum desses três seguirá de fato o Caminho da Magia. No entanto, sua passagem pelo Primeiro Círculo do aprendizado irá lhes ensinar muita coisa sobre o mundo e sobre si mesmos.

Uma série de contos narrados pelas crianças (e também uma da jovem Anna de Bryke) começa aqui.

Esta é a primeira de uma série de ilustrações da artista Angela Takagui feitas especialmente para o blog do Castelo. Enjoy!

terça-feira, 26 de junho de 2012

Doron de Scyllix


À primeira vista ele não passa de um brutamontes desajeitado, e ainda por cima chega a Vrindavahn com o propósito de garantir que as águias douradas continuem a ser usadas como armas de guerra. No entanto, uma segunda conversa é suficiente para mostrar o que se esconde por trás daquele jeitão sem cerimônia.

Companheiro de infância de Kieran, Doron frequentou junto com ele a Escola de Guerra em Scyllix e se tornou Mestre de Combate, encarregado de treinar futuros soldados. Seu pai é um herói de guerra e possui uma fazenda vizinha à Fonte Âmbar, onde Seril, irmã de Kieran, tem uma criação de carneiros. Doron tenta promover a reconciliação entre Kieran e Seril, embora ele mesmo tenha dificuldade em ser aceito pelos dois. Muita coisa parece ter mudado desde os tempos do Exército. No entanto, o conflito entre os representantes de Scyllix e os de Vrindavahn logo será acirrado, e o Mestre de Combate deixará bem claro onde está sua lealdade.

O desenho acima é de Angela Takagui. Com jeitão de metaleiro e o cabelo bem mais longo do que eu imagino, Doron de Scyllix também foi retratado por Ana Clara Thomazini .

segunda-feira, 11 de junho de 2012

O Anel do Escorpião : publicada nova prequel de O Castelo das Águias



Pessoas Queridas,

Conforme anunciado, mais uma história ambientada no universo de O Castelo das Águias foi publicada na Série Contos do Dragão, da Editora Draco. Desta vez, recuamos ainda mais no passado, chegando aos tempos de juventude de um personagem que, embora não apareça em carne e osso no primeiro livro da série, teve uma importância fundamental na vida de Kieran de Scyllix. Alguém consegue adivinhar quem foi?

Aguardo palpites... e, enquanto isso, aqui vai o link para a compra de O Anel do Escorpião pela Amazon, em formato Kindle.

Boa leitura!

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Um Ano e um Dia: o Início da Jornada


ATUALIZAÇÃO: não sei se todos já sabem, mas o livro que deveria se chamar "Um Ano e um Dia" mudou de título e foi publicado em março de 2014 como "A Ilha dos Ossos". Informações aqui.


Queridas Pessoas,

Como eu venho anunciando há algum tempo, O Castelo das Águias chegou ao seu primeiro aniversário. O tempo pareceu voar, mas, olhando para trás, dá pra ver quanta coisa aconteceu e quanto retorno eu recebi de leitores de todas as idades e bagagens.

Como era de se esperar, houve críticas. Algumas apontaram falhas que eu reconheço e que me esforçarei para não repetir; outras, depois de refletir a respeito, me parecem ter tido por base as expectativas e o gosto pessoal de quem leu. Como disse Neil Gaiman, às vezes você mostra histórias para as pessoas erradas, e ninguém gosta de tudo.* No entanto, fico feliz e orgulhosa por poder dizer que a maioria dos leitores aprovou, principalmente os jovens que gostam de romance e fantasia e que constituem o público-alvo deste trabalho.

Na página Livro 1 deste blog eu listo as resenhas publicadas até agora. Agradeço por elas a seus autores, bem como aos demais leitores e amigos pelos elogios, críticas e sugestões que serão muito úteis nessa nova etapa da minha jornada.

Vocês sabem que O Castelo é o primeiro livro de uma série, não sabem? Além dos contos do blog ou publicados à parte, como A Encruzilhada, haverá pelo menos duas continuações em forma de romance. Ambas já têm versões preliminares, mas, tal como aconteceu com o primeiro livro, irei reescrevê-las para tornar a narrativa mais ágil e a própria história mais interessante. Na verdade, já estou começando a mexer no segundo volume da série, cujo título provavelmente definitivo será Um Ano e um Dia.

Dito assim parece fácil, mas não é. Escrever é uma aventura; reescrever pode até ser prazeroso, mas gera um bocado de ansiedade, até porque desta vez eu sei que há leitores à espera desse novo trabalho. Por eles, e também por mim, preciso me esforçar para corrigir os problemas da primeira versão, achar a voz do narrador, desenvolver melhor os personagens e seus conflitos. É um trabalho duro, que ocupará boa parte do meu tempo livre nos próximos meses, mas valerá a pena: ao ser publicado, o que a Editora Draco e eu prevemos para meados de 2013, Um Ano e um Dia não irá decepcionar os leitores da série. E, se tudo der certo, conquistará muitos outros.

Continuem comigo! A saga mal começou.

* Introdução a “Coisas Frágeis 2”, edição brasileira pela Conrad.

domingo, 13 de maio de 2012

Em Nome de Thonarr (Epílogo)

- Thonarr! - Sua voz, que não parecia lhe pertencer, os ecos em meio ao trovão. – Este é o templo dos Heróis, e também o seu! Ajude-me, Senhor do Raio! Thonarr!

Gritou mais uma vez e cerrou os maxilares, a avalanche de energia o sacudindo e retesando cada um de seus músculos. Sugado por um vórtex, possuído, trespassado. As palavras eram pequenas para descrever o que sentia. Os raios se sucediam, alguns vindo do céu, outros do martelo que parecia colado às suas mãos. Ele lutou contra o tremor que lhe subia pelas pernas e gemeu, sabendo o que aconteceria se desfalecesse.

Dê-me forças, Thonarr, É só o que peço. Dê-me forças, mantenha-me em pé, ampare este templo que é seu...
Ampare-me...


E de repente a corrente que o arrastava cedeu, e havia duas pessoas junto ao andaime. Uma era um homem alto, com as feições escondidas por um chapéu escorrendo chuva; a outra também parecia masculina, porém menor e mais esguia, e um vislumbre de seu rosto pontudo fez Padraig engolir em seco.

- Loki – murmurou, o fôlego alterado ao pronunciar o nome daquele que os devotos chamavam de Esquerdo. – E... Woden, o Senhor do Vento – concluiu, vendo o bastão que o homem mais alto segurava na mão direita. Como o martelo, ele brilhava envolto em fios de pura energia, porém esta era de um azul sem traços de rubi. Loki também tinha um bastão, do qual a energia se evolava sob a forma de uma névoa alaranjada. Num só movimento, os dois apontaram seus bastões para o piso rachado, protegendo, escorando, sustentando o peso que, por longos e cruciais momentos, repousara apenas sobre Padraig. Ele os fitou incrédulo, depois ao martelo, sem compreender como viera a fazer parte da tríade de Heróis – e foi quando duas mãos pousaram em seus ombros, ao mesmo tempo em que se ouvia uma voz grossa esbravejar.

- O que está fazendo, garoto? Preciso desse martelo!

- Eu... Senhor do Raio... – Padraig começou a balbuciar, mas foi interrompido pelo Preste Drusius.

- Deixe o menino, Adso, ele acabou de fazer um esforço enorme. – Virou-o para si, encarando-o com olhos bondosos e marejados de lágrimas. – E eu não sei bem como... mas nos livrou do desastre.

Padraig abaixou a cabeça, incapaz de responder o que quer que fosse. Adso se aproximou, ainda resmungando, e pegou o martelo como se fosse uma pluma. Outros homens emergiram do corredor, entre eles alguns artesãos, que não levaram mais do que uns instantes para erguer as vigas e escorar o piso. Estranhamente, passavam sem hesitar entre os raios azuis e alaranjados, levando Padraig a se indagar se eram capazes de ver os Heróis.

E quanto a eles próprios, Woden e Loki – será que se mostravam a outros olhos além dos seus?

- Pronto! Por agora está seguro – disse Adso, em cujas mãos o martelo perdera o brilho. – Muito obrigado pela ajuda, mestre.

- Não há de quê – uma voz grave respondeu de sob o chapéu de Woden. Mortificado, Padraig viu a Liz se extinguir nos bastões, e então os Heróis avançaram, tornando-se visíveis à luz da lanterna.

- Gwyll...! – murmurou ele, reconhecendo o meio-elfo de cabelo eriçado. – Então vocês não eram...?

- Woden e Loki? Não. Éramos só nós – disse Kieran de Scyllix, tirando o chapéu e fitando-o com dois olhos brilhantes. – Mas isso não se aplica a Thonarr. Ele, sim, esteve aqui. E agiu através de você para manter este lugar inteiro.

- De mim? – Padraig contemplou as mãos, trêmulas e vazias. – Da minha fé?

- Sim, filho, mas fé nós também temos – disse o Preste, com suavidade. – Você tem algo além disso: uma vontade tão forte que torna real o que é invisível.

- Ou seja: Magia – concluiu o garoto, olhando para Kieran. Este assentiu, sorrindo, e estendeu a mão, mas Padraig se esquivou, seus olhos se voltando para Gwyll com uma espécie de desafio.

- Magia. Sim. Mas Thonarr esteve aqui – disse. – Thonarr, o verdadeiro, o que existe. Não um maldito símbolo.

- É claro – concordou o meio-elfo. – Isso porque você é um devoto. Mas...

- Silêncio, garoto – rosnou Kieran. Seus olhos se encontraram com os do Preste, num entendimento sem palavras, e Padraig pôde ouvir um suspiro escapar de entre os lábios de Drusius.

- Que seja, então. Confio-lhe o menino – disse, mas o sorriso de Kieran o fez acrescentar, em outro tom:

- E pode deixar que me encarrego de falar com a mãe dele.



Poucos dias depois, usando uma tiara de bronze e uma túnica que lhe chegava aos pés descalços, Padraig recebia as boas-vindas no Castelo das Águias. Fora da época, pois o ingresso ao Primeiro Círculo se dava habitualmente no Solstício de Inverno, mas os mestres haviam decidido não esperar, tão diferente era ele de todos os aprendizes. Naturalmente, iria estudar Matemática e Música, as sagas e os segredos da natureza, além das artes e ofícios da Ala Violeta; as tabelas, símbolos e regras da Magia estavam a cargo de uma elfa, Thalia de Erchedel, que levaria pelo menos dois anos para promovê-lo ao próximo Círculo. Desde agora, porém, fora assegurado a Padraig um contato estreito com o Mentor, o único a poder orientá-lo no estudo e na prática da Magia da Alma. Isso o deixou orgulhoso, mas também com um pouco de medo, pois ficaria em posição de destaque aos olhos de toda a Escola. Como recém-chegado, não queria atrair atenções, muito menos a má-vontade dos colegas. Mas Mestre Kieran o sacudira pelo ombro e rosnara que aceitasse a carga que acompanhava seu Dom.

Seu nome acabava de ser pronunciado, o olhar dos mestres convocando-o à sua presença. Ele se adiantou, consciente de que esses eram os primeiros passos numa longa jornada, e estendeu as mãos, sobre as quais o Mentor depositou uma pena e um livro. As páginas eram brancas, assim como a sua túnica: um símbolo da pureza e inocência dos aprendizes. Só mais tarde encontraria as cores que representavam seu poder.

Os dedos de Camdell tocaram o ponto entre suas sobrancelhas. Uma pedra brilhava no anel em seu indicador, um rubi com toques de fogo, pois a cor da Magia da Alma era também a dos devotos. Sim, sua fé estava em boas mãos. Ele ergueu a cabeça, olhando para os olhos do mago, e sentiu que um pacto fora selado, embora nem uma palavra lhes houvesse saído dos lábios.
Para ele, assim como para seu novo mestre, bastava o que tinha sido dito pela voz de Thonarr.