sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Promessas da Lua (Epílogo)

Com este conto, passado (ou ao menos encerrado) numa festa, despeço-me de vocês até depois do Carnaval. Estou indo buscar inspiração no Velho Mundo, entre ruínas e castelos, para logo voltar e contar novas histórias. Nesse intervalo, convido-os a dar um passeio pelos textos e imagens do blog.


...

As frutas tinham sido colhidas, e as macieiras e marmeleiros tinham perdido as folhas, permitindo que o luar se infiltrasse entre os galhos mais altos. Kieran se encostou em um tronco e ficou à espera, mantendo a imagem de Alix diante dos olhos para que ela não deixasse de segui-lo. Pouco depois, o frio o levou a meter as mãos nos bolsos, e ali ele encontrou mais uma vez o bilhete de Mael, agora tão amarfanhado que a leitura se tornara quase impossível.

Quanto à Lei da Atração, não sei explicar melhor do que o autor do livro, mas vou dar um exemplo para ajudá-lo a entender. Vamos dizer que você quer uma espada nova e não pode comprá-la. Pela Lei da Atração, se você se imaginar com essa espada, se formar em sua mente um quadro bem claro dela em suas mãos, fica mais fácil vir a possui-la. A Lei funciona para todos de acordo com a força de vontade, e é claro que um mago tem mais chances de ser bem-sucedido - mas, por outro lado, ele corre o risco de interferir no fluxo natural das coisas. É por isso que o livro diz: tenha cuidado com aquilo que você deseja,

- Kieran!

pois um simples capricho pode atrair coisas indesejáveis,

- Kieran!

e, assim, deixar de fora da sua vida aquilo que viria a preencher o verdadeiro anseio do coração.

- Kieran! - chamou de novo a voz, ora próxima, ora distante, trazida pela brisa que agitava os galhos nus das árvores. Confundido pelo som, atingido em sua compreensão pelas palavras de Mael, o rapaz olhou em todas as direções, para as macieiras e a trilha e o chão coberto de folhas secas. Por fim, ergueu os olhos para a Lua; e foi ali, sobre a tela branca que se prestava a todas as pinturas, que ele teve sua última visão.

O passado tinha sido de sombras, mas o futuro era repleto de luz, e as formas que revelava eram majestosas, as torres de um castelo. Num pátio de pedras brilhantes, uma mulher e um menino, com os rostos resplandecentes, corriam ao encontro de um homem que apeava de um cavalo - e quando ambos se atiraram em seus braços, Kieran pôde sentir o impacto, como se fosse ele mesmo o amado e o pai. Uma luz mais forte, azul e dourada e violeta, explodiu diante de seus olhos, e o coração se encheu de um sentimento inteiramente novo, ao mesmo tempo que uma voz tornava a soar em seus ouvidos.

Mas não aquela voz.

- Kieran! Kie-rannnnn!

Era Alix, caminhando entre as pereiras do outro lado do pomar. O rapaz se apertou contra o tronco e não respondeu, esperando que ela não o encontrasse, tanto queria e precisava daquele último instante a sós. O encanto ainda não fora completado, mas em vez de recitá-lo ele voltou às palavras de seu mestre, os olhos estreitos no esforço de entender o que aprendera com a alma.

Pois um simples capricho pode atrair coisas indesejáveis

Capricho, não havia outro nome para o que estava fazendo –

e, assim, deixar de fora da sua vida aquilo que viria a preencher o verdadeiro anseio do

- Kieran! - exclamou Alix, enfim distinguindo seu vulto entre as macieiras.

Radiante, ela correu ao seu encontro, e numa fração de instante ele viu tudo que havia para ver: a bonita filha de um fazendeiro, com pastos e bois para herdar e uma excelente mão para fazer manteiga. Era uma boa moça, sem dúvida; mas não era a mulher que ele queria, como também não queria que tudo se resumisse aos encontros nos montes de feno. Não, o que ele queria era amor, uma família apesar de Fergus, uma esposa com quem partilhar alegrias e dores, todos os dias, a vida inteira, a despeito do que Mael dissera sobre a má sorte dos magos. E se esse amor o esperava no futuro, cabia a ele deixar o caminho aberto, para que um dia pudesse abraçar de verdade aquela mulher e aquela criança.

Era a Lei da Atração. Eram as promessas da Lua.

Ele não ia se contentar com nada menos.

- Que bom que achei você! Foi difícil sair sem que me vissem - disse Alix.

De pé, ela o fitava com olhos cheios de fascínio, que se transformaria em estranheza à medida que o elo entre ambos perdesse a força. Agora, porém, ainda esperava que o rapaz a tomasse nos braços, e para ganhar tempo ele tocou seu rosto, pensando que apesar de tudo teria gostado de se deitar com ela. Era uma pena renunciar a isso, embora, pesando as coisas com calma, ele se descobrisse aliviado por ter mantido seus escrúpulos. Faça o que é certo, dissera a voz na floresta, e era o que ia fazer.

No entanto, não parecia muito certo deixar Alix para o Mão de Ferro.

- Kieran, o que... por que estamos aqui? - Pouco a pouco, o encanto se desfazia, como um pano abandonado no tear. - Por que você pediu que eu viesse encontrá-lo?

- Não é nada demais, Alix. Não tenha medo - disse o rapaz, tentando dar à voz um tom tranqüilizador. - Nós só dançamos, e, depois, viemos olhar a Lua. Você não consegue lembrar?

- Lembro, sim, mas lembro também de pensar - não, lembro de querer que você e eu... Ooh! - exclamou ela, e levou as mãos à boca, como se a simples idéia a horrorizasse. Kieran a pegou pelos ombros, sem violência, mas com firmeza, e ia repetir que estava tudo bem quando, sem se fazer anunciar, Teig ap Donnell surgiu entre as árvores, amassando as folhas de Inverno sob os pés.

- Um recado da Cidadela, Kieran. O Mão de Ferro não vem hoje. Só amanhã é que... Ah... Desculpem, eu não sabia que estavam juntos! - exclamou, e recuou para as sombras, com uma surpresa à qual se mesclavam pudor e uma espécie de revolta. Alix soltou um gritinho e se afastou de Kieran, sem perceber o novo brilho que surgira nos olhos do rapaz. Ali estava sua oportunidade de triunfar sobre Declan, e triunfar com honestidade, valendo-se da percepção e da inteligência. Pois só um tolo não teria notado o que se passava com Teig.

Um mago sabe usar o que tem à mão.

- Não julgue as coisas tão rápido – disse ele, saboreando o efeito das palavras. - Admito que você tinha razão para se preocupar, mas não mais. Alix, eu asseguro, vai voltar à festa tão intocada quanto chegou, e eu vou embora, mas antes disso - acrescentou, olhando para a moça - antes de ir, eu tenho algo importante a dizer.

- É? O quê? - indagou Teig, com raiva. - Que você lamenta por quase ter abusado dela?

- Não. Eu nunca lamento nada, e, de qualquer forma, não costumo falar a meu próprio respeito. Agora, quer me ouvir, Alix?

- Quero - disse a moça, mas em seguida olhou para Teig, como a buscar seu apoio. - Isto é, se não for nada ruim.

- É ótimo - retrucou Kieran, e sua boca se torceu num sorriso. - O que tenho a dizer é que você não precisa se casar com o Mão de Ferro, se ele a pedir. Você pode ter um homem melhor em todos os sentidos. Porque, não sei se percebeu - concluiu, com a mão no ombro do amigo. - Teig ap Donnell está gostando de você.

Uma onda de sangue fez corar o rosto de Teig. Enleado como um menino, ele se voltou para Kieran, querendo, e não conseguindo, protestar contra suas palavras. Pois a verdade – não era preciso usar Magia para perceber - é que gostava mesmo de Alix, e estava pronto a amá-la, para isso bastando saber que ela o preferia a Declan. E que garota, diante de um pretendente tão doce, sequer se lembraria de alguém como o Mão de Ferro?

- Teig... - murmurou Alix, fitando-o com olhos surpresos e já enlevados. – Eu nunca tinha percebido...

O rapaz inclinou a cabeça, seu rubor falando por ele enquanto lhe estendia a mão. Ficaram assim por um longo momento, em silêncio, contemplando os traços um do outro à luz da Lua. Alguma coisa foi dita depois disso, e é possível que mais folhas tenham sido esmagadas, mas, o que quer que tenha acontecido, permaneceu como um segredo entre Alix e Teig. Pois é claro que Kieran não ficou lá para ver.

Horas mais tarde, deitado de costas na relva, ele fitava a Lua, recordando cada visão que tivera naquela noite. Sabia que havia algum tipo de ligação entre eles - a criança na cabana sombria; a mulher e o menino sob as torres - mas estava cansado demais, ou, o que era raro, com o coração apaziguado demais para tentar encontrar algum sentido. Por esta única vez, até que a Lua se fosse, Kieran de Scyllix não ia exigir respostas, mas sim se permitir confiar numa promessa.

Assim, ele esqueceu seus deveres, esqueceu os treinos de armas e os livros de Magia, esqueceu até mesmo que teria de ajudar Teig com o Mão de Ferro, quando este quisesse acertar as contas. Em seus pensamentos só havia lugar para as imagens do futuro. Kieran se concentrou nelas e fechou os olhos, lenta e inexoravelmente, sem ligar ao ruído dos passos que vinham do celeiro.

E, pouco depois, dois rostos divertidos e curiosos se inclinavam sobre ele.

- Não é aquele seu amigo, o aprendiz do Mestre das Águias? - perguntou, apertando os olhos míopes, a loura Caitlin, filha de um meeiro da fazenda. - Você não quer tentar acordá-lo?

- Não! Deixe-o dormir em paz - disse Doron, com uma risada. - Sabe-se lá quanto vinho ele pôs para dentro?

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Leia a parte 4 clicando aqui!

...

Espero que tenham gostado. Até breve!

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Promessas da Lua (Parte 4)


A fazenda da família de Teig era a última a contar da margem direita do rio e a mais próxima do centro de Glen Thar, se é que se podia chamar aquilo de centro. A aldeia não passava de um aglomerado de casas e oficinas divididas por uma única rua, no fim da qual havia uma trilha conduzindo ao templo de Thýrr.

Kieran ficou de longe vendo passar o cortejo formado pelas famílias de Bran e Brigid, acompanhados de alguns amigos mais próximos e precedidos por três músicos contratados para a ocasião. A cerimônia havia acabado e eles estavam descendo, entre canções e risadas, para continuar a festa na fazenda.

Segundo o costume, todos os vizinhos num raio de várias milhas tinham sido chamados, e para alimentá-los o pai de Teig matara dez porcos e quase uma centena de aves. Avaloch, o pai de Bran, contribuíra com três bois, cuja carne era assada em fogueiras ao longo da área reservada à festa. No centro havia uma mesa de pranchas de madeira, coberta com várias toalhas emendadas e enfeitada com fitas e flores, mas os bancos estavam reservados aos recém-casados e aos convidados mais importantes. No momento, a única pessoa à mesa era o pai de Doron, o General Gwil, que perdera ambas as pernas no campo de batalha. Sua dupla condição de aleijado e herói de guerra lhe dava direito ao lugar, bem como ao primeiro frango a sair tostado da fogueira. Por força do hábito, Kieran foi cumprimentá-lo, e enquanto o fazia Doron apareceu, com uma taça de cidra para o pai e um abraço para o amigo.

- Já estava achando que você não ia aparecer - comentou, esmagando afetuosamente as suas costelas. - Ficou bem a túnica, hem? Pena que é preta. Uma cor mais alegre talvez disfarçasse essa cara feia.

- Não há nada que eu queira disfarçar, Doron. O Teig foi para o templo?

- Foi, é claro. É a irmã dele que está se casando. E a maioria das garotas da redondeza fez questão de ir também. Angharad, Caitlin, Moll, Alix... E, por falar nisso, onde está Seril? Não diga que não conseguiu tirá-la de casa!

- Não tentei muito. Ela disse que não se sente à vontade em festas.

- Ora... Mas ela dança tão bem! - fez o outro, desconcertado. - Com quem vou me divertir agora?

- Com Caitlin. - Da mesa veio a voz roufenha e brincalhona do General. - Se dançar com ela na festa, quem sabe também consegue dançar depois no celeiro.

- É...! Boa ideia! - exclamou Doron, com uma risada. Inclinou-se, em seguida, para envolver o General pelo ombros, e o rosto de Kieran se contraiu diante da cena de carinho entre pai e filho. Havia muitas coisas que ele tinha de disfarçar.

- Você disse que Alix está vindo do templo com as outras moças - falou, fingindo inspecionar as mangas da túnica. - Será que o Mão de Ferro vem com ela?

- O Mão de Ferro, hem? Já vi que você está tramando alguma - riu Doron. - Bom, mas isso vai ter que esperar. Você não viu, porque saiu antes, mas Declan se empenhou tanto no treino de armas que Mestre Rory o mandou ficar e ajudar os mais novos. Termina bem tarde, por isso ele só vai chegar aqui pela meia-noite.

- Isso se ele ainda vier - disse Kieran, com os lábios apertados.

- Ah, mas claro que vem! Quem deixaria de vir... e de dançar com uma coisinha daquelas?

Fez um gesto na direção do cortejo que acabava de passar entre duas fogueiras. Ainda estavam rindo e dançando, mas já não vinham enfileirados como ao descer a trilha, e sim em pequenos grupos que, aos poucos, foram se misturando com os demais convidados. Alguns tinham passado à frente dos músicos, e entre eles os rapazes viram Alix, de cabelo castanho preso numa trança e um vestido vermelho apertando as formas esguias.

- Kieran! Doron! Vocês perderam uma bela cerimônia! - exclamou Teig, avançando para se juntar aos amigos. - Preste Daffyd estava muito inspirado. Recitou uma saga inteira do Etta.

- Não deve ter sido tanto assim - disse Kieran, fazendo de sua voz um ímã para os olhos de Alix. A moça se voltou, sem entender o impulso que a levara a isso, e suas faces se tingiram de vermelho ao perceber a intensidade com que ele a observava.

Mael de Scyllix era da opinião de que os magos não têm sorte no amor. Para Kieran, aquilo vinha se mostrando verdadeiro: com seu nariz grande demais e a cara fechada, ele não era olhado com interesse pelas garotas, e até hoje só estivera com as fáceis, que se deitavam com os rapazes nos montes de feno e não os importunavam com lamúrias depois disso. Quase todas eram filhas de meeiros humildes, sem expectativas a não ser a de se casar com homens pobres como seus pais; as que tinham mais posses eram vigiadas pelas famílias, e os namoros só eram permitidos quando havia certeza de que resultariam numa união vantajosa para todos.

O herdeiro de uma fazenda modesta como a Fonte Âmbar dificilmente seria considerado um pretendente à altura de Alix, mas as coisas mudariam dentro de alguns anos, quando Kieran se tornasse o Mestre das Águias. Aí poderia ter a mulher que quisesse. Neste momento, porém, nem sua posição, nem seus dotes físicos representavam um grande atrativo, e, por isso, ele teve que usar a única arma ao seu alcance.

Magia.

- Há quanto tempo não nos víamos... Você mudou - disse, cada palavra um fio da rede que tecia em torno dela. Estava sendo muito mais fácil enredá-la do que ao grupo de Declan.

- Ei, o que há com vocês dois? Parece até que acabaram de se conhecer! - Doron, o intrometido de sempre. - Mas Kieran tem razão, Donzela Alix. Você mudou, cresceu... e, sem ofensa, ficou muito bonita. Quer que eu lhe traga uma taça de cidra?

- Não... quer dizer, agora não, obrigada - disse a moça, piscando a fim de conseguir desviar os olhos. Ao redor deles, os convidados pareciam cada vez mais numerosos, o som das vozes e dos risos abafando a música que, no entanto, continuava a se fazer ouvir no fundo de tudo. Mais tarde, quando os brindes e os discursos tivessem sido feitos e saciados os primeiros apetites, as danças começariam, e então aquele som iria crescer, destacando-se dos demais ruídos da noite para envolver os corpos e os corações. Era a atmosfera perfeita para um encanto amoroso.

Kieran deixou que Alix se afastasse e se reunisse às amigas. Ele mesmo permaneceu ao lado de Doron e Teig, partilhando uma caneca de vinho e uns pedaços de carne. Na mesa havia outras opções – sopas, empadas, doces - mas os rapazes preferiam ficar perto do fogo, cuja luz lhes permitia ver e ser vistos pelas moças. De onde estava, conversando e comendo bolos de uma travessa sobre a mesa, Alix se voltou várias vezes à procura de Kieran, e a cada vez ficava mais inquieta, seus dedos torcendo nervosos a ponta da trança. Doron, naturalmente, não percebeu nada, mas Teig acabou por notar a troca de olhares. E, para a surpresa do amigo, reagiu como se aquilo lhe dissesse respeito.

- O que há com Alix? Ela não pára de olhar para você - resmungou, com o cenho franzido. - Você disse, ou fez alguma coisa a ela?

- Eu não – Kieran encolheu os ombros.

- Vai fazer com o Declan - disse Doron, em tom cúmplice. - Aposto que vai. Sei muito bem quando ele está para aprontar alguma.

- Sim, mas... Alix não sabe - tornou o outro. - Parece estranho... que ela olhe tanto assim para um de nós.

- Pois é, talvez seja você e não eu - replicou Kieran, torcendo habilmente os fatos. - Gostaria que fosse assim?

- Que Alix me olhasse? É claro - disse Teig, com um brilho nos olhos. - Só que agora não adianta mais... depois que Declan disse a todos que ia pedi-la, e que ela aceitaria...

- O quê...? Você estava gostando dela? - fez Doron, com assombro. Kieran cruzou os braços e prestou atenção: também para ele aquilo era novo. Teig, porém, negou que estivesse apaixonado por Alix, embora admitisse que não conseguia imaginar ninguém melhor para ter ao seu lado.

- Vocês entendem, não é dela que eu gosto, mas queria alguém como Alix - explicou. - Uma moça de boa família, que saiba dirigir uma fazenda e tenha saúde para me dar muitos filhos. E, além disso, bonita como ela. Vocês não querem a mesma coisa?

- Eu sim, é claro - disse Doron. - Mas esse aí já não sei. Os magos podem casar?

- Podem. Mas a maioria prefere ficar só - respondeu Kieran, sem olhá-los. Uma imagem estranha e fugaz acabara de atravessar sua mente. De quem seria aquela cabana meio arruinada, cercada por árvores, com os topos brancos de neve? O que o levara, tão subitamente, a ter uma visão do Norte longínquo?

- Eu acho que você faria bem em casar - disse Doron, sem notar sua confusão. - Mas não agora. Mais tarde. Depois que você tiver acabado de ler todos aqueles seus livros e se divertido bastante. E por falar em diversão - esfregou as mãos enormes - como é que vamos fazer hoje? Com quem você vai dançar: Deirdre, Moll ou Caitlin?

- Alix - disse Kieran, e ante a estranheza dos amigos acrescentou: - Eu vou dançar com Alix, depois dos brindes, antes da chegada do Mão de Ferro.

- Está maluco? Não faça isso! Ele vai atrás de você! - disse Teig, aflito. - Não aqui, talvez, nem na Escola de Guerra, mas em alguma emboscada. Lembra da última vez em que vocês lutaram?

- Lembro - disse Kieran, levando a mão às costelas. - Mas desta vez vai ser diferente.

- Se for para brigar, conte comigo - ofereceu-se Doron. - Vale a pena sair no braço se eu puder ver a cena... o Mão de Ferro chegando à festa e vendo a futura mulher às voltas com seu pior inimigo.

- Ele vai brigar com Alix também - disse Teig. - Já pensou nisso, Kieran?

- Não... porque não tem a menor importância. - Flexionou os músculos, sem ligar à expressão magoada de Teig. - De qualquer forma, não sei se Declan vai chegar a tempo. Seu pai e o Preste já fizeram os brindes, e agora é a vez de Avaloch. Daqui a pouco todos vão se fartar de comer e começar a dançar. E eu não vou passar a noite inteira com Alix.

- Hum, é... Assim, pode ser - disse Teig, um pouco mais calmo. À mesa, iluminada por tochas presas em estacas a pequena distância, Avaloch fazia seu discurso, o vinho se agitando e respingando para fora da taça que ele erguera em homenagem a Bran e Brigid.

- Por mim, ele teria esperado uns anos - dizia, com a voz forte usada para apregoar seus bois e a carne deles na feira. - Mas o rapaz é como eu, um bom fazendeiro... e, uma vez semeado o campo, faz-se a colheita! E todos nós estamos felizes por isso!

- Colheita, campo... Daqui a pouco vai dizer que minha irmã é uma vaca de leite - observou Teig, com azedume.

- Bom, quando a criança nascer... Ei, não leve tão a sério! - exclamou Doron, defendendo-se do soco que o atingiu no queixo. Meio irritado, meio risonho - mas sinceramente arrependido - ele segurou os pulsos de Teig, jurou que não pretendia ofender Brigid, e enquanto os dois acertavam as diferenças Kieran aproveitou para se afastar. Foi em boa hora, pois os brindes estavam no fim, e, após uma última taça bebida em honra dos recém-casados, os músicos se puseram a tocar mais alto.

- É isso mesmo! Agora estão amarrados, não tem mais jeito! - exclamou, entre risadas, Donnell, o pai de Brigid. - Vão dançar, filhos... e vocês também, vizinhos, se já tiverem enchido a pança. E a senhora vem comigo, Dama Wyn! - acrescentou, puxando a mulher pelas mãos.

Entre os aplausos e risos dos convidados, o casal começou a dançar, e a cada volta mais e mais pares foram se juntando a eles. Com seu cabelo encaracolado, o rosto quase de menino aberto num sorriso, Bran puxou sua jovem esposa, e logo vieram Avaloch e a mulher, a tia viúva de Brigid e o Preste Daffyd, casais de todos os jeitos e idades girando ao som alegre da rabeca. O flautista fizera uma pausa, mas o tambor marcava o ritmo, e o som pulsava dentro das veias de Kieran quando ele se aproximou de Alix.

- Vamos dançar. - Uma ordem, não um pedido: nesse momento, ele tinha poder sobre ela, e sem contestá-lo a moça aceitou sua mão. Kieran a conduziu para o meio da roda e a enlaçou, seus olhos mergulhando nos de Alix como águias sobre a presa.

- Kieran. - Num sussurro, num fascínio, ela murmurou seu nome. Ele se inclinou a fim de prosseguir com o encanto - dizer as palavras, beijá-la - mas o cheiro de seus cabelos, ervas e rosas silvestres esmagadas, o envolveu como uma nuvem, passando numa fração de instante do olfato aos outros sentidos.

O frio. Os gritos no interior da floresta. O gosto de sangue na boca, acompanhando mais uma visão.

Quase tudo era sombra, os ecos indistintos de um passado de fogo e guerra. Entre as árvores, homens e cavalos, mulheres que corriam e caíam sobre as folhas da Primavera, a vinte passos da cabana que ardia em chamas. Um piscar de olhos e a imagem mudou, regressando ao presente: a mesma choupana, com o teto enegrecido e coberto de neve como estivera em sua primeira visão. Agora, porém, seus olhos foram capazes de enxergar além das paredes finas - e lá dentro, à luz das brasas que restavam de um fogo esmaecido, ele viu as formas de uma mulher que segurava um bebê.

Agachada junto à lareira, ela sacudia os ombros como se chorasse, e suas feições não eram visíveis. Kieran tinha certeza de que não a conhecia, mas mesmo assim sentiu-se invadir por um calor estranho, um misto de ternura e piedade que não se lembrava de ter experimentado. Com os olhos da mente, ele buscou o seu rosto, mas em vez disso encontrou o da criança; e para seu espanto o bebê abriu um par de enormes olhos oblíquos, fitando-o como se também pudesse vê-lo, enquanto, ao longe, ele ouvia a voz cristalina de uma mulher.

Kieran... Faça aquilo que você sabe que é certo...

- Kieran? - chamou Alix, apreensiva diante de sua expressão. Ouvindo-a, ele piscou, percebendo que tinha parado de dançar e que o elo entre ambos havia enfraquecido. Reforçá-lo foi questão de instantes, mas dessa vez ele agiu com menos certeza, o peito se apertando com a lembrança da voz tão doce a chamá-lo pelo nome.

Kieran... Faça o que é certo...

- Vamos sair daqui - disse ele, quase ríspido, puxando Alix pela mão. Ela o seguiu para fora do círculo, tropeçando em seus próprios pés para acompanhá-lo, tão rápido ele se afastava da música e dos fogos. A meio caminho, porém, Kieran se deteve, considerando pela primeira vez o olhar dos vizinhos ao seu redor. Ele não podia simplesmente pegar a moça e levá-la consigo.

- Volte para a festa - instruiu-a. - Deixe tocarem mais duas ou três músicas. Quando ninguém estiver prestando atenção, venha me encontrar.

- Onde? - perguntou Alix. O primeiro lugar que ocorreu ao rapaz foi o celeiro - o abrigo invariável dos casais, lícitos ou não, em noites como aquela - mas depois de pensar um pouco ele prometeu esperá-la no pomar, junto às macieiras, onde a Lua devia estar mais bonita. Alix regressou para junto dos outros convidados e Kieran foi em frente, passando pela última fogueira, junto á qual se postava a figura pequena e rígida de Teig.

- Ora, ora... Afinal, você dançou mesmo com Alix - disse ele, de braços cruzados. - Vamos ver o que o Mão de Ferro vai fazer quando souber. Provavelmente chamar Lýr e Dylan para quebrar metade dos seus ossos.

- Bom, se eu tiver que acertar contas com ele, que seja hoje mesmo - disse Kieran. - Logo mais, quando ele aparecer, diga-lhe para ir até o pomar. Eu vou estar lá, esperando por ele, e então vamos nos entender de alguma forma.

- Você vai se entender com Declan? Queria ver isso - respondeu Teig, mas mesmo assim encolheu os ombros. - Está bem, eu dou o recado, mas se ele for até o pomar Doron e eu vamos atrás. Não podemos deixar você sozinho com aquele sujeito.

- Não vou estar sozinho - murmurou Kieran, deliberadamente baixo demais para que Teig o ouvisse. Sem olhar para trás, ele seguiu seu caminho, contornou o celeiro e os estábulos e rumou para o pomar, por uma vereda onde, mesmo com o frio e a seca do Inverno, já se podia sentir o cheiro vivo das árvores.

Leia a parte 3 clicando aqui

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sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Promessas da Lua (Parte 3)


Uma hora depois, com o vento endurecendo seu nariz e as pontas do cabelo ainda úmidas, Kieran chegava à propriedade de sua família, a fazenda que chamavam de Fonte Âmbar, em cujos pastos ficavam cerca de quarenta cavalos do exército. A maioria era deixada em paz, mas alguns serviam ao Mestre das Águias em suas experiências, destinadas a tornar os corcéis de guerra mais rápidos e resistentes. Para auxiliá-lo, ele contava com a fonte que dera nome à fazenda, uma fonte de águas quentes e sulfurosas que, por um simples acaso, Kieran descobrira terem propriedades mágicas.

As dele próprio tinham começado a aflorar naquela época, para grande contentamento de Mael, que se viu contemplado ao mesmo tempo com um aprendiz e um novo manancial de poder a ser explorado. Era o que vinham fazendo ao longo daqueles quatro anos. No entanto, isso implicava em manter um bom número de cavalos junto à fonte, o que só podiam fazer arrendando as terras de Fergus; e assim o pai de Kieran encostou a foice e o arado, vendeu a junta de bois e passou a viver daquilo que recebia do exército. Seus dias, antes ocupados com a lavoura e o trato dos animais, agora eram ociosos, e para matar o tempo ele ia até os estábulos e puxava conversa com os cavalariços.

E algumas vezes - embora não todos os dias - bebia até cair.

Kieran viu de longe a cena deprimente. Diante do estábulo, os homens formavam um semicírculo em torno de Fergus, que se sentava num balde de madeira voltado para baixo. Seus braços grossos, cobertos de pelos castanhos, estavam apoiados nos joelhos, e numa mão ele segurava uma caneca da qual pingavam gotas de vinho. Um dos tratadores, inclinado em sua direção, parecia interpelá-lo, e quanto mais ele insistia em suas perguntas mais os outros riam, pois era patente que Fergus não tinha como responder. Com as pálpebras descaídas, o lábio pendendo sobre a barba emaranhada, parecia fitar o vazio, o que no entanto não o impediu de perceber a chegada do cavaleiro.

- Quem é esse aí? - resmungou, a voz empastada, erguendo os olhos para o rapaz que saltava da sela. - Ah, sim, o garoto do mago... E cheio de importância, não é? Com esse cavalo enorme...

- Seu garoto, Fergus - disse um dos homens. - Que diabo, você não pode estar tão bêbado que não reconheça seu próprio filho!

- Ah, não, não estou - replicou o fazendeiro. - Ele é meu filho, sim... de cabelo preto e tudo, mas não importa, essa maldita gente fala demais. Venha cá, menino. O que você quer aqui?

- Quero que você cale essa boca - disse Kieran, entre dentes. Fergus arregalou os olhos e tentou se levantar, mas logo se deixou cair de novo, contentando-se em revidar com uma praga. Bêbado e de boca suja. Um dos homens deu uma risadinha, mas os outros pareciam constrangidos, e não tardaram a se oferecer para levar o "velho e bom Fergus" de volta para casa.

- Não. Tratamos disso depois - respondeu Kieran. - Agora, preciso de todos aqui para me ajudar com os cavalos.

Voltou as costas, satisfeito, de uma forma estranha e cruel, por manter o pai naquele estado enquanto cumpria as ordens de Mael. Havia uma vitória naquilo. Nos primeiros anos de sua infância, Fergus não cessara de afirmar que ele era inútil, um verme que não valia a pena alimentar, e espancara sua mãe e sua irmã pelo delito de mantê-lo vivo. Depois, vendo que apesar de tudo o garoto crescera, pôs-se a explorar seu trabalho na fazenda, mais do que explorava os bois que puxavam o arado. Nem a escola, obrigatória para os meninos entre os sete e os onze anos, ele pudera freqüentar direito, e seus momentos com os camaradas tinham sido momentos roubados, muitas vezes punidos com surras que o deixavam coberto de sangue.

Kieran esperava ser resgatado dessa prisão pelo exército, o que teria acontecido de qualquer jeito, mas nem em seus melhores sonhos antecipara as vantagens que adviriam da proteção do Mestre das Águias. Sem modéstia quanto a seu próprio valor, sabia que o reconhecimento de seu Dom se devia a Mael, e que fora o temor de ambos - do mago e da Magia - a razão pela qual Fergus refreara seus ataques à família. E, embora não passasse de um aprendiz, Kieran se sentia vingado sempre que afirmava sua posição diante do pai.

Escurecia, e o ar seco se tornara gélido quando ele acabou de examinar os cavalos. Os homens tinham ficado por ali, apreensivos à espera do veredito que, sabiam, chegaria no dia seguinte aos ouvidos de Mael. Foi um alívio ouvir do rapaz que estava tudo em ordem. Pouco depois, ele deu mostras de que pretendia partir, e eles ergueram Fergus por baixo dos braços e o içaram para o dorso do castrado. O velho protestou um pouco, engrolou insultos ao filho e aos cavalariços, mas por fim se deixou levar, sacolejando como um pacote diante da sela até chegarem em casa.

- Seril! Venha aqui fora. Trouxe uma coisa para você! - chamou Kieran.
Sua irmã apareceu à porta, franzindo o cenho ao ver do que se tratava. Mesmo assim, ela o ajudou a puxar Fergus para o chão e a levá-lo para dentro, onde o deitaram, com a roupa e as botas sujas, na cama onde ele dormira por vinte anos com a mãe deles.

A ausência dela era uma sombra a mais na casa de pedra.

- E então, Seril... Como estão as coisas por aqui? - perguntou Kieran, por puro hábito.

- Como sempre. Não falta nada, mas o pai não tem o que fazer e bebe. Colm, o pastor, diz que as cabras estão bem, as aves também vão indo, mas a horta está mirrada como de costume. E dos cavalos é você quem sabe. Quer comer?

- Não, mas preciso me lavar, de preferência tomar um banho. Tem água suficiente?

- Pode ser, mas depois você tem que pegar mais no córrego. A falta que faz um poço...! Quando puder contratar alguém, mando cavar um bem fundo, que não corra o perigo de secar como o que tínhamos.

- Vai ter que esperar o velho morrer primeiro - observou Kieran, e Seril o encarou com olhos apertados. Era uma moça alta, de cabelos castanhos, como os de Fergus, e o perfil aquilino herdado por ambos os seus filhos. À exceção desses detalhes, eles se pareciam com a mãe, e principalmente um com o outro, embora não gostassem de admiti-lo. Seril era ainda mais fechada e desconfiada que o irmão e quase não se dava com os vizinhos. Ele seria capaz de apostar que ela não ia ao casamento de Brigid.

- Eu? Fazer o quê, numa festa? - respondeu, quando Kieran lhe fez a pergunta. - Eu não gosto de dançar, e aquele Doron fica me atormentando até que eu dê umas voltas com ele; não gosto de doces, e os donos da casa exigem que me empanturre. Sem falar na conversa das mulheres. São todas umas idiotas, principalmente as solteiras, que não têm outro assunto a não ser os homens com quem pretendem casar.

- E você conversou com alguma nos últimos tempos? - perguntou o rapaz. - Conversou com Alix?

- A filha da viúva? Não, faz tempo que não a vejo. - Relanceou os olhos para o irmão, que desistira do banho e se esfregava com um pano úmido. - Por quê? Está querendo alguma coisa com ela?

Kieran entortou o canto da boca e não deu resposta. Não era por serem irmãos que ele ia contar a Seril sobre seus planos. Além disso, embora soubesse que queria alguma coisa com Alix, não tinha certeza do quê. Não sabia a que ponto seria preciso chegar para estragar os planos de Declan. Mas, uma vez que começara aquilo, era provável que fosse até o fim.

Um homem tem que descarregar, dissera seu mestre.

Kieran largou o pano e se endireitou, esticando-se para pegar a camisa limpa. De costas para a irmã, não percebeu que ela baixara os olhos, evitando a visão das cicatrizes que o pai legara somente ao filho mais novo. Em vez disso, pôs-se a remexer nas calças que ele havia tirado, e logo encontrou umas moedas de cobre e o bilhete de Mael.

- Isso é seu - disse, passando os achados às mãos de Kieran. - Da próxima vez vou deixar ir tudo para o fundo do rio.

- Fique com o dinheiro - ofereceu o rapaz, num impulso. - Compre alguma coisa para você no mercado.
- Comprar? O quê? E para quê? Tenho tudo de que preciso - disse Seril, e abriu os braços, num gesto que abarcava toda a casa humilde. - Compre você alguma coisa... para Alix, quem sabe? Ou para outra garota?

- Agora você está falando demais. - Fechou a mão, irritado, moedas e bilhete mergulhando no bolso da calça limpa. - Se não quer que eu lhe dê nada, tudo bem, mas não se meta na minha vida. Já tenho problemas de sobra sem isso.

- É, deve ter mesmo - murmurou Seril, ofendida.

Na cama, onde até agora estivera roncando como um porco, Fergus despertou de repente, olhou com uma espécie de terror para o filho e a filha, depois se acalmou, talvez por ter percebido que não faziam parte de seu pesadelo. Virando-se de lado, ele voltou a dormir, enquanto Kieran, calçadas as botas, saía para a noite fria e clara de Inverno.

- Olhe a Lua - disse Seril, atrás dele. - Nem notei que já era tempo de voltar a estar cheia.

- Vai ter outras oportunidades. É assim há mais de mil anos.

- Kay. - Uma doçura inesperada: ela deixara de chamá-lo assim ainda na infância. - Olhe para mim.

- O que é? - fez ele, com impaciência.

- Eu conheço essa cara - disse a irmã. - Não vá se meter em encrenca, por favor, Kay.

Por um instante, ele pensou que Seril ia abraçá-lo - ela, que não o tocava desde a morte da mãe no ano anterior - mas o momento veio e passou como uma sombra diante da Lua. Sem saber receber, muito menos retribuir o afeto, Kieran resmungou qualquer coisa e se afastou, consciente do olhar da irmã a segui-lo, mas sem se voltar, uma só vez, para vê-la à frente da casa, com os braços cruzados e o brilho da Lua nos cabelos.

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quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Promessas da Lua (Parte 2)


O plano deveria ser posto em prática naquela noite, e tanto Doron como Teig estariam presentes, mas Kieran não disse uma só palavra acerca do que pensava fazer. Após o desjejum, ouvindo um idoso e trêmulo general discorrer sobre formações de batalha, ele deixou que sua mente se distanciasse, tecendo idéias e imagens em torno do objetivo central; uma estratégia foi traçada durante o almoço, e, nos breves momentos de descanso que se seguiram, ele se pôs a enumerar para si mesmo os gestos e as palavras que seriam necessários. Sua atenção, porém, foi bruscamente desviada, o aprendiz de mago se convertendo em jovem guerreiro no instante em que o Mestre de Combate pisou na arena.

Conhecimento sobre questões militares granjeava boa reputação, e a resistência nas marchas e exercícios era valorizada, mas o que realmente elevava um aluno da Escola de Guerra aos olhos dos mestres era o seu desempenho no manejo das armas. Nos dois primeiros anos, todos aprendiam a dominar as mais comuns - lança e espada curta, com ou sem o uso simultâneo do escudo -, mas depois disso podiam aprimorar sua técnica em apenas uma delas, ou ainda experimentar diferentes equipamentos. Alguns já tinham até se transferido para as companhias de arqueiros, embora a maioria continuasse a preferir a espada.

Kieran não fugia à regra, mas se destacava por ser um dos poucos a saber esgrimir com uma em cada mão. Ele praticava sempre que podia, no início usando armas de madeira, que não feriam de verdade, mas provocavam feios hematomas nos rapazes. No terceiro ano, passara às espadas de treino fornecidas pelo exército - honestas, mas muito feias, com o punho envolto em fio de lã e cheias de mossas - e desde o último Outono usava as que Mael lhe dera como presente de aniversário. Ou pelo menos esse fora o pretexto. Ele sabia que o mestre queria compensá-lo pela decepção que fora sua ida à guerra.

As novas espadas não eram muito superiores às antigas, mas tinham punhos decorados com placas de bronze e belas bainhas de couro. Suas lâminas eram retas e reluzentes. Outros rapazes possuíam espadas melhores, mas Kieran se orgulhava das suas, tal como se orgulhava da destreza com que sabia manejá-las.

É claro que os desafios eram constantes.

Como de hábito, o treino começou com um aquecimento, uma rápida luta corporal que encheu de areia túnicas e cabelos. Depois, os rapazes se dividiram de acordo com as armas - Doron se separando dos camaradas para treinar com o escudo e a maça - e o mestre de combate foi de grupo em grupo, orientando-os sobre como e com quem deviam se bater. Kieran esperou que lhe fosse designado um adversário, mas, antes que o mestre chegasse até ele, dois dos habituais companheiros de Declan o cercaram com as espadas em punho.

- Você usa as duas mãos - disse um deles, um louro de dentes espaçados chamado Dylan ap Cêth. - Pode lutar ao mesmo tempo com dois homens?

- Não vejo por que não - disse Kieran, encolhendo os ombros. Do outro extremo da arena veio então uma exclamação zombeteira, e ao olhar naquela direção Kieran deu com o Mão de Ferro, que segurava uma espada apenas um pouco menor que ele próprio.

- Com palitos como esses aí, qualquer um pode lutar - disse, atravessando a arena com passos pesados. - Quero ver usar espadas de verdade. Quero ver o que você faz com esta aqui.

- Nada, é claro - replicou Kieran. - Não há nada que um homem do meu tamanho deva fazer com uma espada assim.

- Que é isso! Você não é tão pequeno - contestou Dylan, perfilando-se ao lado do rapaz. - Meio magricela talvez, mas é mais alto que eu, e tem ombros largos.

- Tão largos que as águias se sentem confortáveis neles - riu Lír, o outro amigo de Declan, que tinha uma feia voz esganiçada. - Quando pousam, não querem mais voar. É ou não é?

- Calem essa maldita boca - atalhou Kieran, com mais raiva do que gostaria de demonstrar. - Se querem mesmo lutar, estou pronto. Se não...

- Ah, mas é você que não quer lutar - disse Declan, cortando o ar com a lâmina enorme. - Qual é o seu problema? O peso da espada? Você não pode fazer algum feitiço que a deixe mais leve?

- Isso! Faça uns truques para divertir a gente! - exclamou Dylan. - Ou tudo que o velho Mael lhe ensina é como cuidar daquelas águias piolhentas?

- Vocês vão se arrepender de ter nascido quando eu usar o que ele me ensina - respondeu Kieran.

O tom de voz fora adequado - firme e suave, acompanhado de um olhar penetrante, como tinha de ser - mas uma parte dele duvidava de que pudesse calar aqueles três, e, por isso, eles só tiveram um momento de confusão antes de escapar ao seu domínio.

- Você é que vai se arrepender um dia, seu bastardo - rosnou Declan, enquanto os outros piscavam para clarear a mente. - Sorte sua eu ter planos para esta noite e não querer sujar as mãos. Não fosse por isso...

- Kieran ap Fergus! - A voz de um empregado da Escola, parado junto à entrada da arena de treino. - Estou procurando o aprendiz do Mestre das Águias!

- Aqui - respondeu Kieran, dando um passo à frente. Sem dizer nada, o homem caminhou até ele e lhe entregou um pedaço amarfanhado de papel, no qual havia um bilhete rabiscado às pressas por seu mestre.

Kieran, já que você vai a Glen Thar, passe antes na Fonte Âmbar e dê uma olhada nos cavalos. Para ir, pode pegar o meu preto nos estábulos, mas traga-o de volta amanhã.
Quanto à Lei da Atração,


Kieran interrompeu a leitura e amassou o bilhete, irritado com a ordem que atrapalhava seus planos. Ele, que esperava ser um dos primeiros a chegar à festa, teria agora que se desviar do caminho, fazer uma parada talvez bem longa - e, sim, provavelmente encontrar-se com Fergus. A perspectiva contribuiu para azedar ainda mais seu humor naquela tarde, e ele nem conseguiu se alegrar quando o mestre de combate, inteirado do desafio do Mão de Ferro, reafirmou sua posição sobre o uso das espadas largas.

Bufando sob o bigode incipiente, Declan foi obrigado a medir forças com alguém do seu tamanho, e Kieran desarmou Dylan e Lír à primeira investida. Outros rapazes vieram a seguir, rapazes que não eram seus inimigos mas que disputavam o privilégio de vencê-lo, e ele derrotou um a um até que, suado e afogueado pelo esforço, foi obrigado a pedir uma trégua. A dupla com a qual estava lutando baixou as espadas, sorrindo com satisfação, e Kieran foi até um tonel num canto da arena e despejou três baldes d´água pela cabeça abaixo.

- Quer parar por hoje? - perguntou o mestre de combate, e ele disse que sim, sem se importar com os comentários maldosos a que sua saída daria margem. Em sua túnica molhada, o cabelo grudando na testa e nos ombros, regressou ao alojamento da Escola de Guerra, onde dormia nas noites em que não estava a serviço do mago.

O lugar estava vazio e silencioso, o que dava às paredes de pedra uma qualidade sombria. Alguém como Doron teria logo começado a assoviar ou a cantar, mas Kieran gostou da privacidade, sem a qual não se sentiria à vontade para abrir seu baú. Era ótimo, por uma vez, não ter ninguém às suas costas perguntando o que era o maço de papéis enrolado num canto, ou a razão de haver tantos pares de meias, ou ainda - isso vinha dos garotos da cidade, mimados pelas mães - onde guardava suas túnicas decentes, já que todas no baú eram desbotadas ou cerzidas.

Kieran dependia da boa-vontade da irmã para cuidar de sua roupa e não possuía nada que fosse novo ou vistoso. Mesmo assim, tinha uma túnica decente, feita pela empregada do pai de Doron com o tecido que sobrara de um traje ritual. Não era muito fina, mas assentava bem, e Kieran a teria vestido se pudesse ir direto para a festa. Diante das ordens do mestre, porém - e da certeza de que inspecionar os cavalos o levaria a sujar as roupas e as mãos - ele enfiou a túnica numa bolsa, juntou-lhe um par de calças e roupa de baixo limpa e saiu do dormitório, pegando de passagem a jaqueta que pendia de um gancho na parede.

- Que pressa! Vai tirar o pai da forca? - perguntou um colega, vendo-o correr em direção aos estábulos. Ali, com a crina emaranhada e as pernas salpicadas de lama - mas pelo menos alimentado e descansado - ele encontrou o castrado negro reservado a seu mestre, e logo cruzava os portões de ferro da cidadela, as rédeas na mão esquerda enquanto a outra erguia no ar o medalhão usado como salvo-conduto.

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quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Promessas da Lua (Parte 1)

Pessoas Queridas,

O ano começa, e com ele um conto que também se refere a inícios. Sim, no plural: não estamos falando apenas do início da trajetória de Kieran como mago e como guerreiro, mas também a uma escolha que acabou por se transformar num plano de longo prazo.

A longa espera de Kieran começou (parece) a ser recompensada no livro O Castelo das Águias e terá continuidade nos próximos volumes da saga. Quero, porém, situar vocês em termos de tempo e avisar que este conto se passa 4 anos após os acontecimentos narrados em A Encruzilhada. Lembro também que nosso mago é quase 20 anos mais velho que sua futura prometida, nascida na floresta e criada pela avó, portanto façam suas deduções. Mas principalmente curtam o conto.

Feliz Ano Novo!


Amanhecia, e o sono se escoava pelos portões da cidadela. Nos catres estreitos, lado a lado em longas fileiras no alojamento da Escola de Guerra, os garotos resmungavam e se abraçavam às cobertas, agarrando-se ao que restava dos sonhos enquanto o primeiro clarim soava na torre de vigia. De cada canto da fortaleza se elevou um ruído, o ressoar de pés calçados em botas e de vozes ensonadas, que cresceu à medida que mais e mais homens saíam das casernas para o pátio e os corredores. Em poucos momentos, o próprio ar da cidadela era aquecido pelo burburinho, dentro do qual ninguém poderia se incomodar com o som de uma pena arranhando o papel.

Há quem ouça apenas o que quer ouvir.

- Pelo Esquerdo, rapaz! Já começou com isso de novo? Ou nem chegou a parar durante a noite?

Atarracado, de cabelos cinzentos espetados e metido numa camisa puída, Mael de Scyllix lançou um olhar zangado a Kieran, seu aprendiz de dezoito anos, e deste para os tocos de vela derretidos na superfície da mesa. Mais uma noite de vigília, na certa, e hoje era um dos dias em que ele cumpria seus deveres militares. Não haveria nenhuma oportunidade de descanso entre os exercícios. Mesmo assim – e ainda que estivesse decidido a repreendê-lo - Mael sabia que o garoto ia agüentar firme, e seu apreço por ele crescia na mesma medida que a irritação. Tão resistente e capaz quanto cabeça-dura. Se o poder de um mago residia em sua vontade, Kieran seria um dos grandes.

- Concluí as últimas páginas - disse o rapaz, fechando um livro grosso e esfarrapado. - Fiz anotações sobre minhas dúvidas. Queria esclarecê-las com o senhor no próximo tempo livre.

- Está bem... e até lá deixe isso comigo - disse Mael, pegando as folhas escritas pelo aprendiz. Um rápido olhar confirmou o que já suspeitava: ele se antecipara, e muito, à próxima lição. Além disso, levantara questões sobre as leis da Magia, questões com as quais Mael jamais se preocupara e que teria dificuldade para explicar. Se é que saberia explicá-las. Nos últimos tempos, suas respostas vinham sendo cada vez mais incompletas.

Kieran limpou com cuidado a pena de cisne e a guardou, junto com o resto do material de escrita, no estojo barato fornecido pelo Exército. Suas roupas também eram de tecido barato, embora resistente: as calças e a túnica de lã usadas pelos alunos da Escola de Guerra. Como todos os jovens válidos de Scyllix, ele se alistara aos quatorze anos, mas então já se sabia que estaria numa posição especial, como os rapazes que entravam para o ofício dos armeiros ou dos cirurgiões. No caso de Kieran, o aprendizado seria com o Mestre das Águias, um dos dois cargos ocupados por magos a soldo do Exército. Fora muita sorte, como o próprio Mael fez questão de dizer aos comandantes, ele haver topado com um garoto apto a ser treinado para sucedê-lo. Dificilmente algum outro, nascido numa cidade onde o serviço militar não fosse obrigatório, aceitaria se submeter às regras da Escola de Guerra, somando o estudo da Magia às práticas extenuantes destinadas a transformar meninos em soldados.

Mael obtivera dos oficiais que dispensassem seu aprendiz das marchas mais prolongadas, mas o esforço poupado ali era compensado pelas longas jornadas em busca de ervas curativas e de ninhos de águia. Além disso, as horas de folga, que os outros rapazes gastavam em diversão, eram empregadas por Kieran na resolução de problemas de estratégia, sem falar nas experiências que ele vinha conduzindo por sua conta. Era uma vida dura, sem conforto e sem grandes promessas para o futuro, mas o rapaz não se queixava, talvez porque sua infância tivesse sido mil vezes pior. Ele também se tornara tão duro quanto precisava ser.

Ainda assim, às vezes havia surpresas.

- Bom, mestre, estou de saída - disse Kieran, acabando de calçar as botas. - Tenho aulas a manhã toda e treino com o mestre de combate, mas à noite estou livre. Se não precisar de mim, peço licença para ir a Glen Thar, à festa de casamento de um vizinho.

- Glen Thar... Ah, sim, sim, é claro - fez Mael, recordando-se por fim do pequeno povoado além das muralhas. Fonte Âmbar, a fazenda onde Kieran crescera, ficava mais perto de Glen Thar do que de Scyllix; seus companheiros de infância eram os garotos da aldeia ou de outras fazendas dos arredores. Todos haviam se alistado na mesma época, e as amizades e rivalidades continuavam, embora, preso aos deveres do seu duplo treinamento, Kieran dedicasse cada vez menos tempo aos camaradas. Sair com eles nas noites de folga, então, era raríssimo. A não ser quando não conseguia se concentrar nos estudos - e ao pensar nisso o Mestre das Águias sorriu, lembrando-se da sua própria juventude, quando o sangue em suas veias corria mais rápido e todas as mulheres eram belas.

- Sei o que você vai fazer em Glen Thar - afirmou, rindo diante do ar desconcertado do rapaz. - Por que essa cara? Está com vergonha?

- Eu...

- Bobagem, garoto. Sei como são as coisas na sua idade - tornou Mael. - O estudo, a prática, tudo isso é muito bom, mas não é o bastante. Um homem tem que descarregar, de vez em quando, não é?

- Hum, sim - resmungou Kieran, recobrando o sangue-frio. - O senhor deve ter razão.

- Claro que tenho! Vá, divirta-se na festa, e que você encontre uma garota bem boazinha. Amanhã cedo falamos sobre... sobre isto - acrescentou Mael, dando mais uma olhada nas anotações. - Lei da atração, não é? Bom, vamos ver. Agora, pode ir, você já deve estar atrasado.

Kieran assentiu e saiu sem olhar para trás. O ar gelado da manhã lhe estapeou o rosto, mas, à medida que se afastava dos aposentos do mago, foi-se sentindo envolver pela atmosfera de calor dos corredores. Uma lufada fria, de novo, ao cruzar um pátio e logo ele já estava na Escola de Guerra, misturado aos rapazes barulhentos que se acotovelavam à porta do refeitório.

- Eu primeiro! Fiquei a noite toda de serviço!

- E nós vamos participar da marcha com equipamento! Vinte milhas carregando nas costas um peso igual ao nosso!

- Para trás, garotos! Vocês conhecem a regra... Veteranos primeiro! - bradou, lá de trás, o vozeirão de Doron ap Gwil, vizinho e auto-nomeado melhor amigo de Kieran. Vendo o aprendiz de Mael em meio ao nó formado pelos companheiros, ele passou o braço enorme em torno dos seus ombros e o arrastou consigo enquanto abria caminho até o refeitório. Lá, numa fila mais ordenada, os dois esperaram sua vez de se servir de uma concha de mingau de aveia, depois receberam um pão e uma caneca de cerveja das mãos de um empregado. Era isso que devia sustentá-los até a refeição do meio-dia.

- Ali. Lugar - disse Doron, por entre os dentes que já mastigavam um naco de pão. Mais uma vez, ele forçou sua passagem e a de Kieran entre os companheiros até chegar à última das mesas de tábua crua alinhadas no salão.

- Cheguem os traseiros para lá - disse, e os garotos se apertaram para lhe dar espaço. - Vamos ver que tal está a gororoba hoje. Argh! Isso parece pior a cada dia!

- Pelo menos mata a fome - disse Teig ap Donnell, sentado logo à frente. Era um rapaz de cabelos finos e castanhos, um pouco baixo para os padrões de Scyllix - quase fora recusado no alistamento - mas com um rosto de traços perfeitos que faziam dele o favorito das moças. Apesar disso, e a despeito do seu temperamento alegre, Teig era tímido quando se tratava de mulheres, e Doron troçava dele, afirmando que ainda era tão virgem quanto a irmã mais nova.

Não tão jovem assim, aliás, já que era ela a noiva daquela noite.

- Pois é, quem diria... A pequena Brigid vai se casar - comentou Doron, esvaziando sua caneca. - Ainda ontem andava por aí com uma boneca de pano... e então, mal fechamos os olhos, ela cresceu e virou a cabeça de Bran ap Avaloch. E ele também, não é? Quem diria que ia se casar tão moço...!

- Bom, a família tem dinheiro, e Brigid vai ficar com eles enquanto Bran está no exército; e ele já disse que vai sair aos vinte e um e entrar no negócio de carne. Não vai haver problema - disse Teig, um pouco nervoso. Era evidente que tentava esconder a história por trás do casamento da irmã, o que pareceu funcionar ao menos com Doron. Quanto a Kieran, não disse o que sabia, o que constatara num simples olhar a Brigid e a sua aura amarela e rosada: ela já esperava um filho de Bran. Aquilo era muito comum entre as famílias do campo, e elas resolviam tudo na surdina, de preferência rápido o bastante para que ninguém notasse a gravidez. Que as crianças nascessem, robustas e bem-formadas, cinco ou seis Luas após o casamento - bom, isso devia ser uma bênção divina. De qualquer forma, nem Brigid, nem seu filho, nem os escrúpulos de Teig tinham importância para Kieran, por isso ele deixou o assunto de lado, indo direto ao único ponto que era de seu interesse.

- O que vocês souberam sobre o Mão de Ferro? - Os companheiros o olharam sem entender, mas ele insistiu. - Declan Mão de Ferro andou espalhando que também pretendia casar; que ia pedir a mão de Alix, a filha da viúva Ellen, e que seria na festa de Brigid e Bran. Lembram disso?

- Ah, sim! Ele disse mesmo - confirmou Doron. - Quando ouvi, até achei estranho, porque, pelo que eu sei, até hoje ele mal teve oportunidade de falar com ela. Mas a moça é bonita, e vai herdar uma fazenda de bom tamanho... então, é possível que Declan esteja pensando em garantir o futuro.

- E se ele pedir ela vai aceitar, mesmo que os dois mal se conheçam, só porque ele se destacou na campanha do ano passado. Agora, todos em Glen Thar estão achando que ele vai ter uma carreira brilhante, e família nenhuma vai lhe recusar uma filha. Isso apesar dele ser um imbecil - resmungou Teig. Doron assentiu vigorosamente, arrotando para manifestar seu desprezo, mas Kieran permaneceu em silêncio, seus pensamentos voltados para uma história em que se mesclavam o presente e o passado.

Declan ap Llud não tinha sido o pior pesadelo de sua infância - Fergus, seu pai, fora imbatível nesse papel - mas o que começara como uma rivalidade entre garotos crescera com o correr dos anos, até o ponto em que tornou impossível serem outra coisa senão inimigos. Não se podia dizer que Declan era o único culpado, mas, por ser mais violento e muito mais forte, suas investidas representavam uma séria ameaça para Kieran. Quando ambos tinham quinze anos, chegara perto de matá-lo, atingindo-o com o punho de ferro que o pai trouxera do País do Norte; isso lhe valeu a alcunha que carregava até hoje, e a Kieran várias costelas quebradas e uma insaciável sede de vingança.

A partir daí, ele aproveitou todas as oportunidades possíveis para levar a melhor sobre Declan, superando-o nas aulas de estratégia e história militar, vencendo-o nas competições que envolviam mais habilidade que força e, quando achava uma ocasião propícia, fazendo-o passar pelo idiota que realmente era. Todos na Escola de Guerra se lembravam do episódio em que Declan se perdeu num treino de orientação, apenas por não acreditar que o mapa desenhado por Kieran fornecesse as direções certas. No entanto, a mesma honestidade que involuntariamente lhe servira de arma sempre o impedira de desferir um golpe sujo, de manobrar para tornar Declan malquisto pelos Comandantes.

Assim, na campanha do ano anterior - a primeira de que haviam participado, contra um dos inúmeros clãs do Oeste -, o Mão de Ferro fora elogiado por sua bravura no campo de batalha, enquanto Kieran não fizera mais do que cuidar das águias guerreiras mantidas de prontidão. Deixá-las fora do combate tinha sido decisão de Mael, mas seu aprendiz ainda era questionado a esse respeito, e o tom usado pelos outros o fazia crer que o julgavam inseguro ou incompetente. Declan o chamava em alto e bom som de covarde. Com a reputação elevada entre alunos e mestres, o bracelete conquistado pelo bom desempenho faiscando no bíceps avantajado, ele se pavoneava por toda a cidadela, seus camaradas secundando-o nas provocações a Kieran, cujo ânimo ia se tornando mais e mais sombrio. Tão sombrio que seus escrúpulos haviam se esfumaçado, fazendo-o prometer a si mesmo que usaria todos os meios ao seu alcance para ir à forra.

E o que acabara de ouvir confirmava que tinha encontrado um meio.

Parte 2

...

Conto ilustrado por uma espada celta que encontrei aqui. Logo falaremos sobre umas parecidas.