sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Promessas da Lua (Parte 3)


Uma hora depois, com o vento endurecendo seu nariz e as pontas do cabelo ainda úmidas, Kieran chegava à propriedade de sua família, a fazenda que chamavam de Fonte Âmbar, em cujos pastos ficavam cerca de quarenta cavalos do exército. A maioria era deixada em paz, mas alguns serviam ao Mestre das Águias em suas experiências, destinadas a tornar os corcéis de guerra mais rápidos e resistentes. Para auxiliá-lo, ele contava com a fonte que dera nome à fazenda, uma fonte de águas quentes e sulfurosas que, por um simples acaso, Kieran descobrira terem propriedades mágicas.

As dele próprio tinham começado a aflorar naquela época, para grande contentamento de Mael, que se viu contemplado ao mesmo tempo com um aprendiz e um novo manancial de poder a ser explorado. Era o que vinham fazendo ao longo daqueles quatro anos. No entanto, isso implicava em manter um bom número de cavalos junto à fonte, o que só podiam fazer arrendando as terras de Fergus; e assim o pai de Kieran encostou a foice e o arado, vendeu a junta de bois e passou a viver daquilo que recebia do exército. Seus dias, antes ocupados com a lavoura e o trato dos animais, agora eram ociosos, e para matar o tempo ele ia até os estábulos e puxava conversa com os cavalariços.

E algumas vezes - embora não todos os dias - bebia até cair.

Kieran viu de longe a cena deprimente. Diante do estábulo, os homens formavam um semicírculo em torno de Fergus, que se sentava num balde de madeira voltado para baixo. Seus braços grossos, cobertos de pelos castanhos, estavam apoiados nos joelhos, e numa mão ele segurava uma caneca da qual pingavam gotas de vinho. Um dos tratadores, inclinado em sua direção, parecia interpelá-lo, e quanto mais ele insistia em suas perguntas mais os outros riam, pois era patente que Fergus não tinha como responder. Com as pálpebras descaídas, o lábio pendendo sobre a barba emaranhada, parecia fitar o vazio, o que no entanto não o impediu de perceber a chegada do cavaleiro.

- Quem é esse aí? - resmungou, a voz empastada, erguendo os olhos para o rapaz que saltava da sela. - Ah, sim, o garoto do mago... E cheio de importância, não é? Com esse cavalo enorme...

- Seu garoto, Fergus - disse um dos homens. - Que diabo, você não pode estar tão bêbado que não reconheça seu próprio filho!

- Ah, não, não estou - replicou o fazendeiro. - Ele é meu filho, sim... de cabelo preto e tudo, mas não importa, essa maldita gente fala demais. Venha cá, menino. O que você quer aqui?

- Quero que você cale essa boca - disse Kieran, entre dentes. Fergus arregalou os olhos e tentou se levantar, mas logo se deixou cair de novo, contentando-se em revidar com uma praga. Bêbado e de boca suja. Um dos homens deu uma risadinha, mas os outros pareciam constrangidos, e não tardaram a se oferecer para levar o "velho e bom Fergus" de volta para casa.

- Não. Tratamos disso depois - respondeu Kieran. - Agora, preciso de todos aqui para me ajudar com os cavalos.

Voltou as costas, satisfeito, de uma forma estranha e cruel, por manter o pai naquele estado enquanto cumpria as ordens de Mael. Havia uma vitória naquilo. Nos primeiros anos de sua infância, Fergus não cessara de afirmar que ele era inútil, um verme que não valia a pena alimentar, e espancara sua mãe e sua irmã pelo delito de mantê-lo vivo. Depois, vendo que apesar de tudo o garoto crescera, pôs-se a explorar seu trabalho na fazenda, mais do que explorava os bois que puxavam o arado. Nem a escola, obrigatória para os meninos entre os sete e os onze anos, ele pudera freqüentar direito, e seus momentos com os camaradas tinham sido momentos roubados, muitas vezes punidos com surras que o deixavam coberto de sangue.

Kieran esperava ser resgatado dessa prisão pelo exército, o que teria acontecido de qualquer jeito, mas nem em seus melhores sonhos antecipara as vantagens que adviriam da proteção do Mestre das Águias. Sem modéstia quanto a seu próprio valor, sabia que o reconhecimento de seu Dom se devia a Mael, e que fora o temor de ambos - do mago e da Magia - a razão pela qual Fergus refreara seus ataques à família. E, embora não passasse de um aprendiz, Kieran se sentia vingado sempre que afirmava sua posição diante do pai.

Escurecia, e o ar seco se tornara gélido quando ele acabou de examinar os cavalos. Os homens tinham ficado por ali, apreensivos à espera do veredito que, sabiam, chegaria no dia seguinte aos ouvidos de Mael. Foi um alívio ouvir do rapaz que estava tudo em ordem. Pouco depois, ele deu mostras de que pretendia partir, e eles ergueram Fergus por baixo dos braços e o içaram para o dorso do castrado. O velho protestou um pouco, engrolou insultos ao filho e aos cavalariços, mas por fim se deixou levar, sacolejando como um pacote diante da sela até chegarem em casa.

- Seril! Venha aqui fora. Trouxe uma coisa para você! - chamou Kieran.
Sua irmã apareceu à porta, franzindo o cenho ao ver do que se tratava. Mesmo assim, ela o ajudou a puxar Fergus para o chão e a levá-lo para dentro, onde o deitaram, com a roupa e as botas sujas, na cama onde ele dormira por vinte anos com a mãe deles.

A ausência dela era uma sombra a mais na casa de pedra.

- E então, Seril... Como estão as coisas por aqui? - perguntou Kieran, por puro hábito.

- Como sempre. Não falta nada, mas o pai não tem o que fazer e bebe. Colm, o pastor, diz que as cabras estão bem, as aves também vão indo, mas a horta está mirrada como de costume. E dos cavalos é você quem sabe. Quer comer?

- Não, mas preciso me lavar, de preferência tomar um banho. Tem água suficiente?

- Pode ser, mas depois você tem que pegar mais no córrego. A falta que faz um poço...! Quando puder contratar alguém, mando cavar um bem fundo, que não corra o perigo de secar como o que tínhamos.

- Vai ter que esperar o velho morrer primeiro - observou Kieran, e Seril o encarou com olhos apertados. Era uma moça alta, de cabelos castanhos, como os de Fergus, e o perfil aquilino herdado por ambos os seus filhos. À exceção desses detalhes, eles se pareciam com a mãe, e principalmente um com o outro, embora não gostassem de admiti-lo. Seril era ainda mais fechada e desconfiada que o irmão e quase não se dava com os vizinhos. Ele seria capaz de apostar que ela não ia ao casamento de Brigid.

- Eu? Fazer o quê, numa festa? - respondeu, quando Kieran lhe fez a pergunta. - Eu não gosto de dançar, e aquele Doron fica me atormentando até que eu dê umas voltas com ele; não gosto de doces, e os donos da casa exigem que me empanturre. Sem falar na conversa das mulheres. São todas umas idiotas, principalmente as solteiras, que não têm outro assunto a não ser os homens com quem pretendem casar.

- E você conversou com alguma nos últimos tempos? - perguntou o rapaz. - Conversou com Alix?

- A filha da viúva? Não, faz tempo que não a vejo. - Relanceou os olhos para o irmão, que desistira do banho e se esfregava com um pano úmido. - Por quê? Está querendo alguma coisa com ela?

Kieran entortou o canto da boca e não deu resposta. Não era por serem irmãos que ele ia contar a Seril sobre seus planos. Além disso, embora soubesse que queria alguma coisa com Alix, não tinha certeza do quê. Não sabia a que ponto seria preciso chegar para estragar os planos de Declan. Mas, uma vez que começara aquilo, era provável que fosse até o fim.

Um homem tem que descarregar, dissera seu mestre.

Kieran largou o pano e se endireitou, esticando-se para pegar a camisa limpa. De costas para a irmã, não percebeu que ela baixara os olhos, evitando a visão das cicatrizes que o pai legara somente ao filho mais novo. Em vez disso, pôs-se a remexer nas calças que ele havia tirado, e logo encontrou umas moedas de cobre e o bilhete de Mael.

- Isso é seu - disse, passando os achados às mãos de Kieran. - Da próxima vez vou deixar ir tudo para o fundo do rio.

- Fique com o dinheiro - ofereceu o rapaz, num impulso. - Compre alguma coisa para você no mercado.
- Comprar? O quê? E para quê? Tenho tudo de que preciso - disse Seril, e abriu os braços, num gesto que abarcava toda a casa humilde. - Compre você alguma coisa... para Alix, quem sabe? Ou para outra garota?

- Agora você está falando demais. - Fechou a mão, irritado, moedas e bilhete mergulhando no bolso da calça limpa. - Se não quer que eu lhe dê nada, tudo bem, mas não se meta na minha vida. Já tenho problemas de sobra sem isso.

- É, deve ter mesmo - murmurou Seril, ofendida.

Na cama, onde até agora estivera roncando como um porco, Fergus despertou de repente, olhou com uma espécie de terror para o filho e a filha, depois se acalmou, talvez por ter percebido que não faziam parte de seu pesadelo. Virando-se de lado, ele voltou a dormir, enquanto Kieran, calçadas as botas, saía para a noite fria e clara de Inverno.

- Olhe a Lua - disse Seril, atrás dele. - Nem notei que já era tempo de voltar a estar cheia.

- Vai ter outras oportunidades. É assim há mais de mil anos.

- Kay. - Uma doçura inesperada: ela deixara de chamá-lo assim ainda na infância. - Olhe para mim.

- O que é? - fez ele, com impaciência.

- Eu conheço essa cara - disse a irmã. - Não vá se meter em encrenca, por favor, Kay.

Por um instante, ele pensou que Seril ia abraçá-lo - ela, que não o tocava desde a morte da mãe no ano anterior - mas o momento veio e passou como uma sombra diante da Lua. Sem saber receber, muito menos retribuir o afeto, Kieran resmungou qualquer coisa e se afastou, consciente do olhar da irmã a segui-lo, mas sem se voltar, uma só vez, para vê-la à frente da casa, com os braços cruzados e o brilho da Lua nos cabelos.

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3 comentários:

  1. Oi, Ana,

    Agora entendo parte da personalidade do Kieran. Muito legal está ficando esse conto.

    beijos,
    vania

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  2. Que triste a infância do Kieran e sua irmã. Triste vê-los sem saber com trocar afeto... realmente, agora podemos entender melhor a personalidade dele.

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