terça-feira, 23 de julho de 2013

A Trilha dos Sonhos (Conclusão)



As últimas notas da melodia se desmancharam no ar. Kieran pousou as mãos nos joelhos, sentindo, ou melhor, intuindo a presença de alguém nas vizinhanças da torre. Logo, o som de passos tranqüilos veio substituir o som da harpa em seus ouvidos.

- Kieran? – A voz de Finn, do outro lado da porta. – Pode abrir por um instante?

- Está aberta – respondeu Kieran. Finn entrou, sem esperar convite, e tornou a fechar a porta atrás de si. Estava com as roupas que usara no jantar, mas agora carregava um livro grosso, que forneceu o pretexto para estar ali.

- Vim buscar isso na Torre da Magia. – Era a que usavam para as aulas. – Fazia tempo que eu não ouvia você tocar harpa. Algum motivo especial?

Kieran franziu o cenho e não deu resposta. Finn pousou o livro sobre a mesa e se sentou, olhando francamente para o homem que teimava em chamar de amigo.

- Foi por causa da carta, não foi? – perguntou, embora soubesse a resposta. – Eu vi como você ficou ao ler aquilo. Seja quem for, e como for, essa Anna de Bryke mexeu com você.

Cruzou os braços, esperando uma réplica, mas Kieran continuou em silêncio. Não sabia o que pensar de tudo aquilo. Para um Mestre de Magia, visões como as que tivera eram comuns, mas quase sempre era preciso se concentrar, dirigindo sua vontade para o objeto ou a pessoa que desejava ler. Dificilmente o mergulho era espontâneo. Ainda mais com tanta profundidade, a ponto de sentir a tensão no corpo de Anna e o sopro do vento na floresta.

- Você tem alguma coisa a ver com ela – Finn continuava a buscar explicações. – Com ela ou com o lugar, a tal Floresta dos Teixos. Esteve lá alguma vez? Quem sabe há alguns anos, com suas tropas do Exército?

- “Minhas tropas” eram as águias guerreiras – disse Kieran. – Combatíamos no Oeste, perto da fronteira com as Terras Férteis. Não no País do Norte.

- Nem conheceu alguém da tribo? Tente se lembrar.

- Não, não conheci ninguém – rebateu o outro, impaciente. – Escute, Finn, onde você está querendo chegar?

- A lugar nenhum. Só quero ajudar você – afirmou o meio-elfo. – Uma visão que vem assim, sem que haja uma busca, só pode ser importante. Pode significar muito para o seu futuro. E se ela estiver ligada àquela outra, da sua juventude...

- Espere. – Kieran ergueu a mão, como um escudo. – Vamos deixar uma coisa bem clara. Eu posso ter tido uma visão um dia e supor, com uma razoável dose de certeza, que a mulher correndo para os meus braços seria alguém importante para mim; e eu posso ter contado isso a você, quando trocávamos experiências, porque afinal íamos ter que trabalhar juntos. Mas daí a tecer considerações sobre o meu futuro existe uma grande distância.

- Não são considerações. Só estou dizendo que as visões podem estar ligadas – argumentou Finn. – Estão separadas por anos, eu sei, mas como era a mulher que aparecia da primeira vez?

- Eu já disse. Não dava para ver o rosto.

- Mas, mesmo assim, você viu que ela era morena – replicou o meio-elfo. – E além disso usava uma trança, exatamente como Anna de Bryke.

- O que não quer dizer nada. O mundo está cheio de morenas de tranças. Devo ir atrás de cada uma delas?

- Não... mas dessa, talvez – sugeriu Finn. Sua voz tinha um tom irônico, mas não maldoso. Com toda a provocação, via-se que estava querendo ajudar, e isso era mais do que a maioria das pessoas já tinha feito por Kieran. Ainda assim, a intromissão em sua torre e em sua vida já passara dos limites, contrapondo-se à boa vontade que, até agora, ele tivera em relação a seu companheiro da Ala Azul.

- Não vou atrás de ninguém – disse, e sua convicção cresceu a cada palavra. – Vi uma mulher diante de um castelo e vi uma garota na floresta, que talvez sejam a mesma pessoa, mas não me interessa saber. Se existe alguém para mim, ela deve seguir seu caminho, assim como eu sigo o meu, até nos encontrarmos.

- E enquanto isso – disse Finn – você toca harpa, e os desejos que nascem daí constroem a mesma realidade que surgiria da sua vontade mágica. Não é um caminho mais longo?

- Talvez. – Kieran deu de ombros, seus dedos pousando de novo sobre as cordas do instrumento. – Mas é o melhor caminho.

De leve, como não o julgaria capaz alguém que visse a força de suas mãos, ele tocou então umas poucas notas – uma sequência que, de alguma forma, lembrava a sucessão de passos na estrada. Finn ouviu tudo em silêncio, depois inclinou a cabeça, sinal de que não iria contestar sua decisão. Talvez até a tivesse compreendido. De qualquer forma, não haveria mais explicações.

- Muito bem. Você sabe o que faz – disse ele, após alguns momentos. – Não voltarei ao assunto, mas, se um dia quiser conversar...

- Posso contar com você – completou Kieran. – Vou me lembrar.

- Ótimo. E pratique bastante – acrescentou Finn, já com o livro na mão. – A prática é o segredo de tudo, você sabe.

Kieran ergueu um canto da boca e não respondeu. Às suas costas, a porta se moveu suavemente, e logo os passos de Finn se afastaram pelo corredor.

Deixado a sós, ele relanceou os olhos pelo quarto, que por alguma razão lhe parecia maior do que antes. As paredes de pedra eram geladas, embora fossem revestidas por tapeçarias, e a cama era grande demais. Só as janelas tinham o tamanho certo. Talvez fossem até pequenas para acolher o vento, aquele companheiro fiel que espalhava sua música no ar. O vento, porém, havia cessado, deixando-o cercado de silêncio e de uma solidão que o incomodava pela primeira vez em tantos anos.

Mas não muito. Nem por muito tempo, ele sabia, e essa certeza era quente como a sensação de vitória. Mesmo a espera, por maior que fosse, não seria um fardo; agora finalmente ele tinha um nome pelo qual chamá-la, e até talvez pudesse acompanhar cada passo da sua história nos cadernos em que ela se retratava com as tranças negras e aquela parka desajeitada. E, além disso, um par de pernas fortes, capazes de vencer a mais difícil das trilhas.

Quando chegasse a hora, elas trariam Anna em segurança até o Castelo das Águias.

...

Para saber mais sobre as primeiras visões de Kieran, relativas à morena de tranças, talvez você queira ler o conto "Promessas da Lua", que remete o personagem aos seus dezoito anos e a uma rivalidade de juventude. Comece por aqui.

3 comentários:

  1. Oi, Ana.

    E não é que trouxeram mesmo? Enfim, aguardemos com ansiedade o próximo livro!!!

    beijos
    vania

    ResponderExcluir
  2. Muito bem feito mesmo. Clap clap clap clap!

    É raro ler alguém assim tão talentoso. Não tem jeito: hoje mesmo vou ver se compro esse livro. Bom demais!

    ResponderExcluir
  3. Muito obrigada, Piscies, pelos seus elogios. Senti-me honrada com eles. Espero que volte sempre para ler contos e que goste do livro, mas devo avisar que ele é escrito sob o ponto de vista feminino, o da Anna, e tem mais ênfase no romance. Para contrabalançar, o segundo livro da série, que deve sair no finzinho deste ano, é narrado pelo Kieran. Aí tem piratas, vampiros e muita magia. :)

    ResponderExcluir