terça-feira, 29 de abril de 2014

O Javali : um conto de Lear Encanta-Dragões (Parte 3)


       Meia hora depois, tendo cortado caminho por uma trilha nua e escarpada – em que foi bem difícil conduzir o porco -, Lear, Erdon e os quatro meninos chegaram ao Bosque das Abelhas, pelo qual, tinham certeza, Razek havia passado um pouco mais cedo. Durante a caminhada, os rapazes tinham explicado em que consistia seu plano, sem deixar clara a principal intenção, mas mesmo assim os garotos tinham aderido com entusiasmo. Queriam ver, é claro, a projeção de pensamento prometida por Lear – um encanto adiantado, que poucos aprendizes do Castelo dominavam -, mas a ideia de Razek se deparando com um javali era mais excitante, era prenúncio de emoção e de umas boas gargalhadas. Lohan foi o único a objetar, dizendo que Razek não gostaria daquilo, mas aceitou o argumento de Lear quando este afirmou tratar-se de uma boa experiência e que todos os magos deviam se preparar para imprevistos. Ou achavam que tudo na vida se daria de acordo com o que aprendiam nos manuais?
       - Razek, por exemplo, quer tudo a seu jeito – disse, enquanto se abaixava para esquadrinhar as marcas no solo. – Ele ainda vai me agradecer por coisas como estas.
       - Eu acho que ele não passou por aqui – disse Erdon, que examinava outra parte da trilha. – Pelo menos ainda não.
       - Tem certeza? Eu sinto que ele está perto – replicou o Encanta-Dragões. – Procure mais um pouco, aí nesse caminho entre os pinheiros.
       - O que estão procurando? – indagou Conan.
       - Sinais. Isto é, algo que mostre que Razek passou por aqui – explicou Erdon. – Galhos quebrados, por exemplo, ou plantas e flores pisadas. Eu não vejo nada, mas ele mencionou que vinha pelo Bosque das Abelhas, e Lear diz que pode senti-lo, então...
       - Eu não o sinto. Sinto alguém por perto. – Lear franziu o cenho. – E a sensação que tenho é que se trata dele, até por saber que Mestre Rydel vai pela trilha da montanha.
      - Sim, tudo bem, mas o que fazer se nada confirmar isso? – perguntou Erdon. – E se a gente não achar...
       - Pegadas? – perguntou Gareth, parado junto a um arbusto de espinheiros.
Foi como se um alarme houvesse soado. No instante seguinte, todos os seis estavam agachados junto ao arbusto, examinando a pegada nítida – porque deixada sobe uma parte mais macia do solo – em que se desenhava a marca de um pé ligeiramente maior que o de Conan. E o pé, sem sombra de dúvida, calçava um mocassim.
       - Razek? - Erdon se voltou para Lear.
      - Razek – confirmou o Encanta-Dragões, que acabava de se levantar e já empunhava o bastão de poder.
     - Estou achando esse pé meio pequeno – Lohan murmurou, mas ninguém lhe deu ouvidos. Logo adiante, Gareth havia localizado outras pegadas, impressões mais suaves dessa vez, que, no entanto, deixavam evidente a direção tomada por Razek.
       - É para lá que vamos mandar o nosso amigo peludo – disse Erdon, enquanto Lear se concentrava, olhando fixamente para o javali e apontando-lhe o bastão. – Para começar, é preciso formar um elo com o animal, não tão profundo como o que Mestre Kieran tem com as águias, mas uma espécie de caminho que a sua vontade deve seguir para controlar os passos dele. Não é lá muito fácil, mas Lear consegue por um tempinho, vejam só!
      Dizendo isso, ele apontou para o Encanta-Dragões, que entoava uma espécie de cântico em voz baixa enquanto movia lentamente o bastão para lá e para cá. Em poucos instantes, a cabeça do javali começou a oscilar de um lado para o outro, acompanhando o bastão, os olhos parecendo maiores e vidrados por força do encanto. Lear deu dois passos cautelosos para um lado, observou o animal por um momento, depois começou a caminhar em direção à pegada deixada por Razek. Hesitante a princípio, o javali o seguiu, o focinho sempre apontado para o bastão, depois para o solo, quando o Encanta-Dragões proferiu algumas palavras de comando.
       - Que língua ele está falando? – quis saber o Ruivo.
      - Os magos têm uma língua secreta, da qual a gente aprende o básico a partir do Segundo Círculo, com Mestra Lara. Quem sai daqui com a iniciação do Terceiro domina as palavras de poder e recitações mais simples, o resto pode-se aprender em Riverast ou com outros mestres que saibam – disse Erdon, mas se calou em seguida, lembrando da última conversa com Finn a respeito da Escola de Riverast. Nem ele nem Lear eram considerados aptos até aquele momento. Lear, porém, conseguiria se iniciar no Terceiro Círculo dentro de algumas luas, simples questão de justiça, pois nem mesmo o Carrasco punha em dúvida seu talento.
       Para a Magia... e a Arte também.
    O javali se demorou cheirando a primeira pegada antes de acompanhar o aprendiz às marcas seguintes. Fez a mesma coisa quando chegou a elas, enquanto Lear apontava para o bosque e pronunciava novas frases. Então, após alguns momentos de silêncio, ele encostou a ponta do bastão na testa do animal e ordenou, de forma que todos entendessem:
      - Vai!
     O eco de sua voz ainda vibrava no ar quando o javali disparou pela trilha. Lear o observou por um instante, depois se voltou para os garotos, sorrindo com um triunfo que cresceu ao ver a admiração em seus rostos. Conan e o Ruivo chegaram a bater palmas, e Lohan estava mudo e imóvel. Gareth também ficara impressionado, mas parecia refletir, e após alguns momentos se voltou para Erdon com uma pergunta.
       - O javali vai seguir o Razek ou simplesmente a trilha?
      - Melhor que isso. – foi Lear que respondeu. – O javali vai procurar e colar na pessoa que fez as pegadas. Não mandei que ele atacasse, é claro, mas o Razek vai pensar que o bicho é feroz e vai ficar maluco com ele andando à sua volta na trilha. Por outro lado, ele não tem arma, e além disso é proibido caçar na Floresta das Águias, então vamos ver como ele se sai. Que acham?
      - Isso! Faça a projeção de pensamento! – exclamou o Ruivo, com um entusiasmo ao qual os colegas prontamente aderiram. Não havia como ser de outro jeito, pois aquele era um encanto reservado aos mestres e a pouquíssimos aprendizes adiantados em Magia da Forma, e sempre figurava como uma das maiores atrações nos espetáculos da Ala Violeta. Lá, porém, a grande tela formada pela energia mágica de um ou mais praticantes exibia imagens criadas em sua mente – jogos de luz, dragões, pequenas histórias em sequência – ao passo que, desta vez, Lear lhes prometera algo real. Combinando dois encantos, ia buscar as imagens de Razek, onde quer que estivesse, e projetá-las na tela mágica, para que todos pudessem ver o Esquentadinho lidando com o javali. E, com certeza, dar mais risadas do que tinham dado, até agora, em todo aquele verão.
      Lear encontrou um espaço livre entre duas árvores e ergueu o bastão, desenhando algumas formas no ar, à altura dos seus olhos. Erdon não precisou explicar que estava criando os limites da tela. O Encanta-Dragões se concentrou, inspirando profundamente, e levou uma das mãos à testa, enquanto a outra segurava o bastão apontado para o espaço vazio. Um mago menos preocupado em fornecer um espetáculo o teria deixado assim, mas Lear tingiu sua tela de um violeta claro e translúcido, e os garotos grudaram seus olhos ali e ficaram à espera.
      Alguns momentos se passaram, momentos de tensão e expectativa em que o único som foram os murmúrios do Encanta-Dragões em sua busca. Erdon também estava concentrado, sua energia canalizada para o ponto sensível no centro da testa, pouco acima dos olhos, e dali projetada para o companheiro, ao qual, assim, emprestava um pouco do seu poder. O esforço o impedia de prestar muita atenção nos meninos, mas ele percebia que estavam ficando impacientes à medida que o tempo passava e nada aparecia na tela. Um deles – Conan, talvez – estapeou um mosquito que lhe pousara no braço, e outro começou a arrastar os pés, atrapalhando ainda mais sua já difícil concentração.
      Por fim, quando a tensão e a frustração dos garotos já se mostrava palpável, alguma coisa finalmente surgiu na tela: uma imagem de Razek, não tão perfeita quanto esperavam mas ainda assim bem nítida, que o mostrava agachado à beira de um lago cercado de pedras. Os meninos soltaram uma exclamação satisfeita e se mexeram, apertando-se uns contra os outros em busca da melhor posição para acompanhar a cena. O meio-elfo usava apenas os calções, que enrolara quase até os joelhos - Erdon se lembrou de ouvi-lo falar que a tribo da Floresta do Sol andava nua no verão – e talvez houvesse tirado também os mocassins, pois seus pés estavam mergulhados na água, assim como as mãos, que pareciam estar lavando ou limpando alguma coisa. Uma pedra? Um peixe?
         - Ele parece muito tranquilo – o Ruivo sussurrou pouco depois. – Cadê o javali?
        - Olha a cara do Lear – Conan sussurrou de volta, e diante disso Erdon também teve que olhar. O Encanta-Dragões continuava de pé, o bastão erguido, a mão livre parada num gesto que auxiliava na criação de formas. Estava imóvel, à exceção de um movimento quase imperceptível dos lábios, mas o que impressionava era a sua expressão. Parecia talhada em pedra, as faces em geral coradas agora muito pálidas, tensas com o esforço de controlar aqueles dois encantos que, no entanto, ele dominava muito bem desde o ano anterior. Isso deixou Erdon intrigado e teria chegado a preocupá-lo, não fosse o fato de sua atenção se voltar principalmente para a tela, onde a imagem estava mais borrada, mas se expandira para mostrar o cenário em torno de Razek.
       Troncos altos e espaçados, com copas altas. Grama verde salpicada de pedras cobertas de musgo, que iam ficando mais e mais numerosas à medida que se aproximavam do lago. Quatro meninos de pé, formando um semicírculo ao redor do aprendiz mais velho, que continuava a mexer na água. E, ao que se podia perceber... nenhum javali.
       - O que aconteceu? – perguntou Conan em voz alta. Erdon encolheu os ombros e se voltou para Lear, esperando que respondesse – mas em vez disso o Encanta-Dragões deixou escapar uma longa exalação e estremeceu dos pés à cabeça, ao mesmo tempo que as imagens e a própria tela se desfaziam num piscar de olhos. Os meninos soltaram uma exclamação de surpresa, a decepção perdendo importância diante da expressão confusa do rapaz.
       - Tem... Eu senti... Tem algum outro encanto interferindo – disse ele, após alguns momentos em que tentou recobrar o fôlego. – Alguém está usando Magia perto daqui. O mesmo tipo de Magia. E ela é... mais poderosa que a minha, pelo que senti.
        - Não é o Razek, é? – perguntou Erdon, para em seguida concluir: - Não pode ser, ele está longe. Aliás, mais longe do que pensávamos, ou pelo menos foi essa a minha impressão.
        - Sim, o javali não foi até ele, e... e ele não está nos arredores do Bosque das Abelhas – admitiu Lear, passando a mão pelos cabelos. – Aquele lago fica do outro lado da floresta. Mas vimos as pegadas, então... Não sei o que pode ter acontecido.
        - Vai ver que foi esse outro encanto – sugeriu o Ruivo. – Alguém pode ter descoberto o que você ia fazer e resolveu atrapalhar, para ajudar o Razek.
        - A Tarja, quem sabe – disse Conan. - Eles não são namorados ou coisa assim?
        - Ela não estava no Castelo – lembrou Gareth.
      - A Tarja? Ela não tem mais poder do que ... – começou Lear, mas um súbito ruído entre os arbustos o fez calar. No instante seguinte, o som de galhos estalando sob passos firmes levou os seis a se voltarem para o pequeno bosque de pinheiros, do lado oposto àquele pelo qual seguira o javali – e a sensação de Lear quanto ao poder que interferira em seu encanto foi confirmada assim que eles viram o homem que se aproximava pela trilha.

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Confus@? Eu ajudo. O conto começa aqui..
E termina aqui..

quinta-feira, 24 de abril de 2014

O Javali : um conto de Lear Encanta-Dragões (Parte 2)




        - Ali vem ele – disse Erdon aos quatro meninos que o fitavam com ar intrigado. Estavam numa clareira próxima à Trilha dos Cogumelos, assim chamada por causa das fileiras de chapeuzinhos brancos, vermelhos e sarapintados que brotavam em suas margens. Os grupos de Rydel e Razek haviam tomado outros caminhos, depois de Erdon ter convencido o mestre de que Lear precisara se demorar no alojamento e não tardaria a alcançá-los. Então, quando se viu a sós com o Ruivo e os outros três, ele se divertiu a criar suspense, dizendo que além do passeio teriam uma aula de Magia e que o Encanta-Dragões tornaria aquele dia inesquecível.
          A ideia, é claro, é que Razek também não fosse esquecer.
       Lear chegou à clareira momentos depois de Erdon tê-lo avistado, arrancando exclamações de susto e divertimento dos garotos. Além do bastão de poder – tão decorado e espalhafatoso como o dono, e que não deveria ser necessário ali -, o Encanta-Dragões segurava uma corda grossa, à qual estava atado um grande porco peludo. Fora fácil convencer o criado do Castelo a deixar o animal aos cuidados de Lear, que o levaria à floresta para comer bolotas de carvalho e tentar desenterrar algumas trufas. Elas valiam bom dinheiro no mercado... se fossem tão boas quanto a história que ele contara sobre o fazendeiro de Madrath.
       - Muito bem, pessoal, cheguem mais perto – chamou Lear, e os garotos formaram um círculo ao seu redor. – O Ruivo aqui pediu algumas dicas sobre ilusionismo, que como vocês sabem não se destina apenas a entreter as pessoas numa feira ou casa nobre. Para que mais serve?
       - Para a gente se disfarçar – disse prontamente o Ruivo. – Ir a lugares sem que ninguém perceba.
       - Ótimo. Que mais? Numa guerra, por exemplo. O que se pode fazer com ilusionismo?
       - Confundir o exército inimigo? – sugeriu Conan, o mais velho do grupo.
      - Fazer aparecer alguma coisa temível, mas que não está lá – disse, de forma atrapalhada, um meio-elfo chamado Lohan. – Fazer eles pensarem que você tem um exército maior ou uma catapulta.
       - Perfeito. Há vários usos, além desses, mas já pegaram a idéia. Agora – Lear olhou de uns para os outros, criando expectativa. – No Segundo Círculo, vocês vão saber que uma coisa é ilusionismo e outra é transformação. Esta é mais difícil e mais limitada, mas ambas têm algo em comum: elas partem do princípio de que alguma coisa deve estar lá no início, alguma coisa com que se trabalhar, que se use como base. Um bom ilusionista pode fazer surgir imagens do nada, ou – franziu as sobrancelhas, imitando a expressão usual de Kieran – um mestre de Magia do Pensamento pode convencer alguém de que está vendo o que de fato não existe. Mas na maioria dos casos é preciso uma base, e quanto mais próxima do que se que obter, mais fácil, em geral, para o mago que executa o ato. Entenderam até agora?
       - Sim. – A resposta em uníssono, e em seguida a pergunta de Conan:
       - Vamos usar esse porco numa transformação?
       - Nnnnn... não exatamente – disse Lear. – Nós vamos...
       - Já sei! Vamos transformar o porco em bacon! – exclamou o Ruivo, ao que os garotos caíram na gargalhada. Erdon também riu, e até o Encanta-Dragões, após um desconcerto inicial, se juntou a eles. Quando os risos se acalmaram, ele tornou a chamar a atenção de todos para o porco, que os olhava com ar indiferente enquanto mascava um punhado de cogumelos.
       - Um porco faz pensar em bacon, certo, mas não é só isso – afirmou. – Com o que ele parece? Que outro animal?
       - Um javali – o Ruivo não tardou a dar a resposta esperada.
       - Muito bem. Então vamos supor que eu quisesse usar ilusionismo – não a transformação, porque no ponto dos estudos em que me encontro isso exigiria certo trabalho preliminar -, mas, bem, digamos que eu estivesse cruzando uma floresta e notasse estar sendo seguido, talvez por um salteador. E vamos supor que eu tivesse um porco...
       - Por que um mago andaria por aí com um porco? – questionou Lohan.
       - Ora, por que... Sei lá! Eu estou com um, não estou? – replicou o Encanta-Dragões, e o garoto não teve como contestar. – O porquê não importa. Vamos supor que eu queira usar ilusionismo para me livrar do salteador. Há várias coisas que posso fazer, mas, supondo que tenha um porco – enfatizou, olhando para Lohan -, seria bem rápido criar uma ilusão em que ele se pareça com um javali. Por que o javali? Porque é um animal feroz, e eu posso fazê-lo parecer zangado e terrível, e o salteador não vai querer ficar no caminho da fera. Compreendem?
       - E como você faria? – indagou o Ruivo. Lear sorriu: aquela era a sua deixa. Erguendo o bastão de poder, ele o apontou na direção do porco e assumiu uma expressão muito séria, provavelmente desnecessária, mas importante para garantir a atenção dos garotos.
       - Observem – disse, mas antes de começar lembrou-se de pedir a Erdon: - Vá explicando a eles.
       - Certo, se eu conseguir – murmurou o amigo, embora soubesse que não seria tão difícil. Qualquer um, no Terceiro Círculo, tinha condições de explicar como se fazia.
       - Você precisa olhar para o porco. Isto é, o animal ou objeto que vai usar como base. – Fez um pausa, durante a qual o único som foi o de Lear murmurando baixinho. – Em seguida, você tem que afirmar – não muito alto, mas é melhor dizer as palavras do que apenas imaginá-las – que os olhos, as orelhas, o focinho, enfim, cada pelo desse porco irá se transformar naquilo que você deseja. É o primeiro passo, e, o que é mais importante: você tem que ser o primeiro a acreditar naquilo que diz.
       - Não tem uma fórmula? – perguntou Conan.
       - Tem, mas isso vocês não vão aprender agora, só a partir do próximo Círculo. Até lá, o que precisam é aprender como focar, fazer sua imaginação levar a melhor sobre qualquer certeza – disse Erdon, repetindo as palavras de Finn, o mestre de Magia da Forma. – Isso dá força àquilo que você diz, àquilo que você projeta sobre a sua base. É quando o encanto começa a funcionar. Olhem só!
       - Estou vendo – murmurou Gareth, um menino de olhos verdes, que até então estivera calado. – O porco está ficando maior, e... Ugh! Está criando presas!
       - Está se transformando – disse Lohan, uma nota de pânico na voz.
       - Não está. Isso é só o que seus olhos são levados a ver. Façam silêncio – recomendou Erdon. Sabia que a verdadeira Magia começava a ser tecida, nos gestos, nas palavras e na vontade de Lear.
       Absorto em seu trabalho, o Encanta-Dragões fechara os olhos e erguera a voz, entoando um cântico que os meninos não entendiam, mas que parecia encerrar o segredo de uma completa e incrível transformação. Diante de seus olhos deslumbrados, presas se alongaram, pelos claros se converteram em cordas grossas e eriçadas, olhos plácidos e indiferentes ganharam um brilho raiado de fúria. De um dócil animal de cercado a fera ameaçadora. E nenhum deles, quando tudo terminou, estava plenamente convencido de que se tratava de uma simples ilusão.
        - E agora? – perguntou Conan, após um tempo, o fôlego suspenso. – Como esse encanto se desfaz?
      - Uma palavra – disse Lear. – Ao tecer o encanto de ilusão, usei uma palavra que o desfará, bastando ser pronunciada. Outra maneira seria usar algum outro encanto que anulasse o primeiro; ou, ainda, submeter a ilusão ao olhar de um mago mais poderoso que eu. Já ouviram falar de um aprendiz que conseguisse ludibriar o mestre?
       - Não – de novo, o coro em uníssono.
      - Mas outros aprendizes podem ser enganados – disse Erdon, erguendo a voz impaciente. Já bastava de perder tempo com Lear a contemplar sua própria obra, pois afinal os dois tinham um plano. Era preciso ir adiante com ele para que todo aquele trabalho valesse a pena.
       - Erdon tem razão. Podemos enganar outro aprendiz, ou até mesmo um mago não muito bom ou que esteja destreinado – disse o Encanta-Dragões, recobrando o foco. – E até mesmo alguém que conheça, ou diga conhecer muitíssimo bem os animais da floresta. Por exemplo, Razek... Será que ele olharia para esse javali e veria um simples porco cor-de-rosa?
       Os garotos se entreolharam, gestos e expressões de dúvida. Lear os observou por um instante, depois olhou para Erdon e abafou uma risadinha.
          O verdadeiro espetáculo ia começar.

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Leia a primeira parte do conto aqui.

E a terceira aqui.

Javali retratado em bestiário medieval.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

O Javali : um conto de Lear Encanta-Dragões (Parte 1)




Pessoas Queridas,



Antes do feriado da Páscoa, deixo aqui o início de um conto ambientado entre os dois romances da nossa série. O ponto de vista é o de Erdon, um aprendiz meio atrapalhado que aparece brevemente em "O Castelo das Águias", mas os personagens principais são outro aprendiz, ainda mais trapalhão, e... um porco. 

Espero que curtam!


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       Feitas as contas, a probabilidade de conseguir sua espada de mago se tornara ainda mais remota, ao menos naquele ano. Mas não havia como negar que foi divertido.
       Era Dia de Descanso, e, apesar de ter acordado à hora de sempre, Erdon ficou na cama até mais tarde. Seus companheiros de quarto haviam saído, mas ele ouvia os passos de alguém no andar de cima, e pelo impacto sabia não se tratar das moças nem de Gwyll. A dedução se mostrou verdadeira quando os passos desceram a escada, acompanhados por um cantarolar em surdina, e avançaram pelo corredor; quando alcançaram sua porta, houve um instante de silêncio, seguido por uma batida e o ranger dos ferrolhos.
       - Erdon, Colm, Nardus? Alguém por aí? – perguntou uma voz familiar. Erdon respondeu com um resmungo, ao que o outro, sentindo-se autorizado, entrou no quarto e tocou a meia esfera de cristal incrustada na parede. A luz suave se espalhou pelo aposento, fazendo Erdon piscar e iluminando o rosto do Encanta-Dragões.
       - Vamos comer alguma coisa? – perguntou ele, no tom alegre de sempre. – Vai ser a raspa do tacho, pois com certeza somos os últimos. Mas saco vazio não para em pé.
       Erdon tornou a resmungar e se levantou, pegando as calças que largara emboladas no chão e as vestindo de qualquer jeito antes de sair e se encaminhar à sala de banho. Estava alagada, com pegadas enlameadas por toda parte e a banheira ainda cheia da água ensaboada usada pelo último aprendiz para se lavar. Pisando com cuidado, Erdon se deslocou pelo aposento e fez suas abluções, voltou ao quarto para pegar uma túnica e a vestiu enquanto caminhava até o refeitório com Lear. Iam sem pressa, a brisa nos cabelos, os pés à vontade em sandálias de palha trançada. Eram boas as manhãs de verão no Castelo das Águias.
       O desjejum se estendia até a nona hora nos Dias de Descanso, mas o movimento costumava ser bem pequeno após a oitava. Eles estranharam a aglomeração de crianças no refeitório, não o grupo completo do Primeiro Círculo, mas uns doze ou quinze deles reunidos em torno de Rydel, o elfo de cabelos dourados que ensinava Ciências da Terra. Ao seu lado estava um aprendiz do Terceiro Círculo, um meio-elfo de pele morena que atendia por Razek, mas a quem os rapazes mais velhos se referiam como Zangado ou Esquentadinho. Estava de pé, com os braços cruzados e um leve sorriso para variar da habitual cara fechada; quando os colegas se aproximaram, não os chamou, mas tocou o ombro do mestre, cujos olhos se iluminaram assim que ele os viu.
       - Erdon, Lear, estava mesmo precisando de vocês – disse ele, em tom efusivo. – Ou melhor, alguém como vocês, com certo conhecimento da floresta. Falei com Tarja e Vergena, mas elas têm um compromisso na cidade, e não sei onde Gwyll se meteu,,, Vocês teriam umas horas livres? Para ajudar com um trabalho do Primeiro Círculo?
       - É uma competição! – exclamou uma aprendiz de tranças, que devia ter uns doze anos.
     - É uma brincadeira. – Como bom seguidor de Odravas, Rydel tinha aversão a tudo que envolvesse competir e medir forças. – Vamos à floresta em três grupos e todos têm a missão de encontrar os itens de uma lista. Uma folha de carvalho, um grilo, uma pena de coruja e assim por diante. Os grupos vão por caminhos diferentes e se reúnem no fim do dia para ver o que conseguiram.
       - Quem achar mais coisas vence – disse o garoto que parecia ser o mais velho do bando.
    - Não, Conan! Mestre Rydel já disse que não! – retrucou um pequeno elfo. – É só para ver se reconhecemos os itens da lista!
       - E onde entramos nisso? – indagou Lear. – É para acompanharmos dois grupos?
       - Um só – disse Razek, prontamente.
      - Isso mesmo, um só – confirmou Rydel. – Eu irei com um dos grupos; Razek, que desde a confusão com as águias tem acompanhado Kieran à floresta, irá com outro; para o terceiro pensei em Anna, mas ela não passou a noite na Ala Rosada e não apareceu para o desjejum. Então, achei que dois aprendizes do seu grupo seriam uma boa opção, pois vocês têm boa noção das trilhas da floresta e podem ajudar um ao outro. Vocês aceitam?
       - Ah, mestre... Não sei não. Acho que me confundo com as trilhas – Erdon procurou uma desculpa. – Mestra Anna deve chegar logo. Ela seria bem melhor que Lear e eu.
       - Não sabia que você falava por Lear – observou Razek, irônico.
       - Ora, seu...
      - Sem brigas, por favor – cortou Rydel. – Se vocês não podem, ou não querem, tudo bem. Faremos nosso jogo num outro dia.
       - Ah, nãããão! – exclamou a menina de tranças. Um murmúrio de protesto cresceu entre os demais aprendizes, permeado por algumas sugestões: que fossem só dois grupos (não ia ter muita graça); que chamassem Mestra Anna (quem ousa bater à porta de Mestre Kieran, que é com quem ela deve estar?); que o terceiro grupo fosse acompanhado pelo sempre solícito Padraig, o que seria uma boa solução, se o aprendiz de Mestre Camdell não madrugasse no templo da cidade todos os Dias de Descanso.
       Erdon ouviu a discussão com um certo sentimento de culpa, mas ainda assim sem querer abrir mão do seu tempo livre. Imaginava que Lear fosse manter a mesma posição, o que teria certamente acontecido... se o Encanta-Dragões não fosse tão suscetível ao apelo dos colegas mais novos.
       - Ah, por favor, por favor, venha com a gente! Vai ser divertido! – pediu a das tranças.
       - Você pode aproveitar e nos dar umas dicas sobre transmutação. Pelo menos ilusionismo – disse um menino arruivado.
       - Ah, não sei, pessoal...
       - Vamos! Você é o melhor! – insistiu o garoto. Lear suspirou, depois encolheu os ombros e olhou para Erdon, com um sorriso que deixava claro o quanto estava envaidecido.
       - Bom, quando todos pedem, não tenho como negar – disse ele. – Vamos lá? Acho que é nosso dever ajudar quem está começando.
       - Ajudam mais se trocarem de calçado. Essas sandálias vão deixar vocês na mão – disse Razek, apontando para o próprio pé calçado de mocassim.
       Não era um mau conselho – dado por outro, talvez soasse bem-intencionado – mas o sorrisinho que o acompanhou era bem coisa de Razek, e era irritante, como tudo que vinha dele. Tão irritante que Erdon até se esqueceu de arranjar uma desculpa; quando percebeu, Rydel já começava a formar os grupos. Cinco crianças seguiriam com ele, incluindo as duas únicas meninas; Razek ficou com quatro garotos, Erdon e Lear com outros quatro, entre os quais o arruivado, que aliás era chamado de Ruivo pelos colegas. A partida foi marcada para dali a meia hora, dando tempo às crianças para irem se trocar ou buscar qualquer coisa no alojamento. Erdon franziu a testa ao ouvir o Ruivo declarar que trocaria as sandálias por sapatos.
       - Para quê? Vão estragar na floresta – argumentou. – Mestre Rydel também está de sandálias.
       - Ele é seguidor de Odravas – retrucou o menino. – Costuma andar até descalço. Mas eu é que não vou correr o risco de machucar meus pés.
       - Eu vou de sandálias – atalhou Lear. – E você não disse que eu era o melhor?
       - Em ilusionismo, claro que sim. Mas de floresta quem entende é o Razek. Sem querer ofender! – acrescentou o Ruivo, vendo a expressão dos colegas mais velhos. Ele tratou de dar o fora enquanto os dois se entreolhavam, sem trocar uma palavra, mas deixando muito claro um para o outro o que teriam gostado de fazer com o pescoço de Razek.
       - Sujeitinho arrogante – comentou Erdon, quando saíam da Ala Branca com as frutas que tinham pegado à guisa de desjejum. – Acha que sabe tudo, só porque nasceu na Floresta do Sol e caçava quando garoto. Mas duvido que conseguisse pegar alguma coisa hoje em dia.
       - Bom, ele derrubou duas águias guerreiras com Magia – concedeu o Encanta-Dragões. – Mas deixou as duas feridas; não achou um jeito melhor de combatê-las, quando nós... Ei! Que bicho é esse, amigo? Vai ter festa?
       A pergunta fora dirigida a um dos empregados do castelo, que atravessava o pátio puxando um enorme porco preso a uma corda. Ia a caminho da cozinha, onde, como disse aos rapazes, esperava que o intendente fosse chamado para lhe dizer o que fazer com o animal. Este acabara de ser entregue no portão dos fundos pelo pai de um aprendiz, em agradecimento ao que a Escola de Artes Mágicas estava fazendo por seu filho.
       - Se não o matarem hoje, não sei como vão fazer. Não temos chiqueiro, e um bicho desses não pode ficar solto – disse ele, coçando a cabeça. – No estábulo acho que não dá certo.
       - Não mesmo... e acho que o Gurion não vai resolver nada hoje, Ele sempre vai à cidade nos Dias de Descanso – disse Lear, referindo-se ao intendente. – A cozinheira-chefe também, e Lori não vai mandar matar o bicho sem falar com ela. Acho que você vai ter que dar um jeito por hoje.
       - É, parece – disse o homem, contrariado. – E bem que eu tinha mais o que fazer do que ficar cuidando de porco.
       - Bom, se quiser, a gente pode ajudar, por uma parte do dia – tornou Lear, ao que Erdon o olhou perplexo. Não tinha entendido nada. O Encanta-Dragões, porém, continuou a falar, contando sobre um parente que tinha uma fazenda perto de Madrath e o que costumavam fazer com os porcos no verão.
       Então, embora o plano completo lhe escapasse, Erdon começou lentamente a compreender.

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Ilustração mostrando um camponês alimentando porcos com bolotas de carvalho, retirada do History Cookbook.

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Curtiu o início da história? Continue a ler clicando aqui.

terça-feira, 8 de abril de 2014

Odisseia da Literatura Fantástica



Pessoal, para quem ainda não sabe, vou participar da III Odisseia de Literatura Fantástica em dois diferentes momentos.

No dia 11 de abril - Dia do Aluno -, às 14 horas, vou conversar com estudantes que leram meu livro "O Castelo das Águias". Depois disso, fico no evento batendo papo com quem aparecer por lá.

No dia 12 de abril, sábado, divido a mesa com Nikelen Witter e Simone Saueressig para falar sobre literatura juvenil. O bate-papo está marcado para começar às 14:30 e terminar uma hora depois - e logo em seguida, infelizmente, eu terei de correr pro aeroporto a fim de pegar o último voo com destino ao Rio.


Mesmo sem poder ficar até o fim, espero rever muita gente boa e conhecer novos amigos. A gente se vê por lá!

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Saiba tudo sobre o evento clicando aqui.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

O Tesouro dos Mares Gelados



O Tesouro dos Mares Gelados é uma história de aventura, mais ou menos no estilo de “A Ilha dos Ossos”, porém narrada em terceira pessoa. Seu protagonista é um dos personagens secundários mais queridos pelos leitores de “O Castelo das Águias”: o Conselheiro Thorold que Anna diz parecer “um bárbaro das Terras Geladas”.

De fato, a saga tem início nas Terras Geladas de Athelgard, uma daquelas regiões que não estão no mapa – elas se situam na porção noroeste da ilha, entre o Cabo Svaltarr e o Bosque dos Sons –, mas logo nas primeiras páginas vemos Thorold e seu irmão Karl embarcando numa jornada rumo à Ilha dos Ossos, onde talvez encontrem a cura para o mal que aflige seu tio, Sigurd Barbagris. Lá, Thorold irá se deparar com seres com os quais jamais teria sonhado, enfrentará piratas e tempestades, mas, sobretudo, passará pelo desafio de conhecer a si mesmo e fazer as escolhas certas.

A ambientação desta novela (ou conto longo, se preferirem) provavelmente irá remeter o leitor ao universo dos vikings, com seus Jarls, seus banquetes, os barcos longos tripulados por homens fortes e o espírito de conquista e aventura. E realmente o povo das Terras Geladas é inspirado nos vikings, embora eu não tenha pretendido retratá-los de forma fiel. Por sua vez, Thorold é descendente dessa raça, mas cresceu em outro lugar, pensa de outra forma – e um dos pontos de tensão nesta história é justamente o conflito entre suas ações e a maneira como seus companheiros encaram questões como a honra, a fidelidade e até o direito à vida.

Para atravessar estas águas turbulentas, nosso herói não está sozinho. Além de Karl, seu irmão mais velho (e mais teimoso), ele conta com sua tripulação – o ruivo Magni, Bjarni Bico de Corvo, Bolli o Jovem, entre outros -, e com amigos feitos de forma inesperada: o caçador Joot Pele de Foca, uma jovem fugitiva dos piratas e a xamã de uma tribo élfica. Por fim, nesta aventura os leitores de “O Castelo das Águias” irão reencontrar outra personagem muito querida, Freydis, aprendiz na Escola de Artes Mágicas .

Thorold, Freydis, Tatyana, Joot e Karl foram retratados na ilustração exclusiva de Angela Takagui para o blog do Castelo das Águias. Todos eles estão à sua espera no e-book O Tesouro dos Mares Gelados.

Espero que gostem!