quinta-feira, 24 de abril de 2014

O Javali : um conto de Lear Encanta-Dragões (Parte 2)




        - Ali vem ele – disse Erdon aos quatro meninos que o fitavam com ar intrigado. Estavam numa clareira próxima à Trilha dos Cogumelos, assim chamada por causa das fileiras de chapeuzinhos brancos, vermelhos e sarapintados que brotavam em suas margens. Os grupos de Rydel e Razek haviam tomado outros caminhos, depois de Erdon ter convencido o mestre de que Lear precisara se demorar no alojamento e não tardaria a alcançá-los. Então, quando se viu a sós com o Ruivo e os outros três, ele se divertiu a criar suspense, dizendo que além do passeio teriam uma aula de Magia e que o Encanta-Dragões tornaria aquele dia inesquecível.
          A ideia, é claro, é que Razek também não fosse esquecer.
       Lear chegou à clareira momentos depois de Erdon tê-lo avistado, arrancando exclamações de susto e divertimento dos garotos. Além do bastão de poder – tão decorado e espalhafatoso como o dono, e que não deveria ser necessário ali -, o Encanta-Dragões segurava uma corda grossa, à qual estava atado um grande porco peludo. Fora fácil convencer o criado do Castelo a deixar o animal aos cuidados de Lear, que o levaria à floresta para comer bolotas de carvalho e tentar desenterrar algumas trufas. Elas valiam bom dinheiro no mercado... se fossem tão boas quanto a história que ele contara sobre o fazendeiro de Madrath.
       - Muito bem, pessoal, cheguem mais perto – chamou Lear, e os garotos formaram um círculo ao seu redor. – O Ruivo aqui pediu algumas dicas sobre ilusionismo, que como vocês sabem não se destina apenas a entreter as pessoas numa feira ou casa nobre. Para que mais serve?
       - Para a gente se disfarçar – disse prontamente o Ruivo. – Ir a lugares sem que ninguém perceba.
       - Ótimo. Que mais? Numa guerra, por exemplo. O que se pode fazer com ilusionismo?
       - Confundir o exército inimigo? – sugeriu Conan, o mais velho do grupo.
      - Fazer aparecer alguma coisa temível, mas que não está lá – disse, de forma atrapalhada, um meio-elfo chamado Lohan. – Fazer eles pensarem que você tem um exército maior ou uma catapulta.
       - Perfeito. Há vários usos, além desses, mas já pegaram a idéia. Agora – Lear olhou de uns para os outros, criando expectativa. – No Segundo Círculo, vocês vão saber que uma coisa é ilusionismo e outra é transformação. Esta é mais difícil e mais limitada, mas ambas têm algo em comum: elas partem do princípio de que alguma coisa deve estar lá no início, alguma coisa com que se trabalhar, que se use como base. Um bom ilusionista pode fazer surgir imagens do nada, ou – franziu as sobrancelhas, imitando a expressão usual de Kieran – um mestre de Magia do Pensamento pode convencer alguém de que está vendo o que de fato não existe. Mas na maioria dos casos é preciso uma base, e quanto mais próxima do que se que obter, mais fácil, em geral, para o mago que executa o ato. Entenderam até agora?
       - Sim. – A resposta em uníssono, e em seguida a pergunta de Conan:
       - Vamos usar esse porco numa transformação?
       - Nnnnn... não exatamente – disse Lear. – Nós vamos...
       - Já sei! Vamos transformar o porco em bacon! – exclamou o Ruivo, ao que os garotos caíram na gargalhada. Erdon também riu, e até o Encanta-Dragões, após um desconcerto inicial, se juntou a eles. Quando os risos se acalmaram, ele tornou a chamar a atenção de todos para o porco, que os olhava com ar indiferente enquanto mascava um punhado de cogumelos.
       - Um porco faz pensar em bacon, certo, mas não é só isso – afirmou. – Com o que ele parece? Que outro animal?
       - Um javali – o Ruivo não tardou a dar a resposta esperada.
       - Muito bem. Então vamos supor que eu quisesse usar ilusionismo – não a transformação, porque no ponto dos estudos em que me encontro isso exigiria certo trabalho preliminar -, mas, bem, digamos que eu estivesse cruzando uma floresta e notasse estar sendo seguido, talvez por um salteador. E vamos supor que eu tivesse um porco...
       - Por que um mago andaria por aí com um porco? – questionou Lohan.
       - Ora, por que... Sei lá! Eu estou com um, não estou? – replicou o Encanta-Dragões, e o garoto não teve como contestar. – O porquê não importa. Vamos supor que eu queira usar ilusionismo para me livrar do salteador. Há várias coisas que posso fazer, mas, supondo que tenha um porco – enfatizou, olhando para Lohan -, seria bem rápido criar uma ilusão em que ele se pareça com um javali. Por que o javali? Porque é um animal feroz, e eu posso fazê-lo parecer zangado e terrível, e o salteador não vai querer ficar no caminho da fera. Compreendem?
       - E como você faria? – indagou o Ruivo. Lear sorriu: aquela era a sua deixa. Erguendo o bastão de poder, ele o apontou na direção do porco e assumiu uma expressão muito séria, provavelmente desnecessária, mas importante para garantir a atenção dos garotos.
       - Observem – disse, mas antes de começar lembrou-se de pedir a Erdon: - Vá explicando a eles.
       - Certo, se eu conseguir – murmurou o amigo, embora soubesse que não seria tão difícil. Qualquer um, no Terceiro Círculo, tinha condições de explicar como se fazia.
       - Você precisa olhar para o porco. Isto é, o animal ou objeto que vai usar como base. – Fez um pausa, durante a qual o único som foi o de Lear murmurando baixinho. – Em seguida, você tem que afirmar – não muito alto, mas é melhor dizer as palavras do que apenas imaginá-las – que os olhos, as orelhas, o focinho, enfim, cada pelo desse porco irá se transformar naquilo que você deseja. É o primeiro passo, e, o que é mais importante: você tem que ser o primeiro a acreditar naquilo que diz.
       - Não tem uma fórmula? – perguntou Conan.
       - Tem, mas isso vocês não vão aprender agora, só a partir do próximo Círculo. Até lá, o que precisam é aprender como focar, fazer sua imaginação levar a melhor sobre qualquer certeza – disse Erdon, repetindo as palavras de Finn, o mestre de Magia da Forma. – Isso dá força àquilo que você diz, àquilo que você projeta sobre a sua base. É quando o encanto começa a funcionar. Olhem só!
       - Estou vendo – murmurou Gareth, um menino de olhos verdes, que até então estivera calado. – O porco está ficando maior, e... Ugh! Está criando presas!
       - Está se transformando – disse Lohan, uma nota de pânico na voz.
       - Não está. Isso é só o que seus olhos são levados a ver. Façam silêncio – recomendou Erdon. Sabia que a verdadeira Magia começava a ser tecida, nos gestos, nas palavras e na vontade de Lear.
       Absorto em seu trabalho, o Encanta-Dragões fechara os olhos e erguera a voz, entoando um cântico que os meninos não entendiam, mas que parecia encerrar o segredo de uma completa e incrível transformação. Diante de seus olhos deslumbrados, presas se alongaram, pelos claros se converteram em cordas grossas e eriçadas, olhos plácidos e indiferentes ganharam um brilho raiado de fúria. De um dócil animal de cercado a fera ameaçadora. E nenhum deles, quando tudo terminou, estava plenamente convencido de que se tratava de uma simples ilusão.
        - E agora? – perguntou Conan, após um tempo, o fôlego suspenso. – Como esse encanto se desfaz?
      - Uma palavra – disse Lear. – Ao tecer o encanto de ilusão, usei uma palavra que o desfará, bastando ser pronunciada. Outra maneira seria usar algum outro encanto que anulasse o primeiro; ou, ainda, submeter a ilusão ao olhar de um mago mais poderoso que eu. Já ouviram falar de um aprendiz que conseguisse ludibriar o mestre?
       - Não – de novo, o coro em uníssono.
      - Mas outros aprendizes podem ser enganados – disse Erdon, erguendo a voz impaciente. Já bastava de perder tempo com Lear a contemplar sua própria obra, pois afinal os dois tinham um plano. Era preciso ir adiante com ele para que todo aquele trabalho valesse a pena.
       - Erdon tem razão. Podemos enganar outro aprendiz, ou até mesmo um mago não muito bom ou que esteja destreinado – disse o Encanta-Dragões, recobrando o foco. – E até mesmo alguém que conheça, ou diga conhecer muitíssimo bem os animais da floresta. Por exemplo, Razek... Será que ele olharia para esse javali e veria um simples porco cor-de-rosa?
       Os garotos se entreolharam, gestos e expressões de dúvida. Lear os observou por um instante, depois olhou para Erdon e abafou uma risadinha.
          O verdadeiro espetáculo ia começar.

.......

Leia a primeira parte do conto aqui.

E a terceira aqui.

Javali retratado em bestiário medieval.

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