quinta-feira, 26 de junho de 2014

O Passo Além do Círculo - Cap. 3: Golpe Baixo


     - Pessoal, hoje sou eu que vou conduzir o treino. Vai ser bem leve, porque a maioria de nós está com as restrições do trabalho mágico. Preparados?
      Os aprendizes se perfilaram lado a lado diante de Vergena. Cada um portava uma espada de treino, de ponta e gume embotados, e um bastão de poder, que eles mesmos haviam confeccionado ao longo do Segundo Círculo. A tarde de inverno estava fria, mas os jovens se encontravam num dos pátios descobertos, e alguns tinham a pele e os pelos arrepiados. Não Razek, é claro; com sua aura vermelha, ele irradiava calor, hoje ainda mais do que de costume, talvez por antecipar o prazer do combate mágico. Era nessas horas que Tarja mais gostava de estar ao seu lado.
      Esticando o pescoço, ela deu uma olhada em Gwyll na ponta da fila. Como Mestre Kieran, ele usava um bastão de aveleira, mas a semelhança parava aí; o rapaz dificilmente parecia zangado ou mesmo aborrecido, e Tarja não se lembrava de tê-lo visto brigar com alguém. Era o aprendiz mais talentoso da Escola, ou pelo menos o que harmonizava melhor a Forma e o Pensamento, tanto que não se sabia qual dos mestres lhe entregaria a espada. E, por um tempo, havia sido seu namorado, não de forma exclusiva, mas num arranjo que agradava a ambos... e que ela pensara poder prolongar, cruzando os mares do tempo e da distância, até que se reencontrassem na Escola de Riverast.
       No entanto, Gwyll parecia empenhado em queimar todas as pontes.
      Vergena andava ao longo da fileira, juntando os colegas em duplas. Gwyll ficou com Padraig, um jovem humano surpreendentemente adiantado para o Segundo Círculo; Tarja pensou que treinaria com Razek, mas Vergena pediu ao rapaz que ajudasse um aprendiz recém-chegado ao grupo de combate.
      - E você treina com Mysa – disse, dirigindo-se a Tarja e apontando para uma garota elfa com um bastão que parecia de madeira recém-cortada.
       - Por que não põe os dois juntos? – sugeriu a amiga.
      - E você ficaria com Razek? Não, os novatos vão aprender mais se combaterem com colegas mais adiantados. Além disso, você e Razek são próximos demais, se conhecem muito bem... é bom que trabalhem juntos, mas não que entrem na mente um do outro.
      - Iam ver um ao outro – disse um aprendiz meio-humano, com uma risadinha. – Ia ser como quebrar um espelho.
      - Nada de quebrar. Já disse que hoje o treino é leve – replicou Vergena. – Se alguma coisa acontecer com vocês, eu serei a responsável perante Mestre Kieran.
         - Por que ele não está aqui hoje? – perguntou Mysa.
      - Porque está na reunião com Mestre Finn e os outros, falando de mim, de Gwyll e dos demais postulantes à espada e à tiara. Mais alguma pergunta?
       - Eu tenho – disse um menino. – Só por curiosidade, por que você preferiu virar Mestra das Águias a ir para Riverast?
       - Porque é uma boa oportunidade e não vou tê-la de novo. Quero experiência – disse Vergena. – Riverast só me proporcionaria estudo e mais estudo. Isso não é para mim e sim para gente paciente, como o Gwyll.
        - Então o Razek não vai – tornou o garoto, com malícia. – Ele é impaciente, esquentado...
       - E daí? Mestre Kieran estudou lá e ele também é assim – replicou, entre dentes, o aprendiz mais velho. – Eu e Tarja vamos sim para Riverast, dentro de um ano ou, no máximo, um ano e meio. Vamos ficar na Mantos Azuis ou na Três Chaminés. Podem apostar.
       Olhou dentro dos olhos de Tarja, como se quisesse lhe assegurar que seria assim, e deu um sorriso satisfeito quando ela assentiu. Tal como Gwyll, Razek fizera planos, calculara cada passo dali para a frente, mas deixando claro que não pretendia caminhar sozinho. Ao longo de todo aquele ano ele se empenhara em trazer Tarja de volta para sua vida, começando por retomar a cumplicidade que tinham no Primeiro Círculo – estremecida desde que ela se mudara para a torre – e em seguida avançando para algo eu oscilava entre a amizade e uma espécie de namoro todo feito de abraços e entendimentos tácitos. Gwyll era o parceiro dos beijos e das conversas, que eram sempre divertidas, cheias de brincadeiras e tiradas que a faziam rir. Já quando o assunto se aprofundava, e principalmente quando dizia respeito a eles dois...
        - Esquiva – disse Vergena de repente. A palavra causou em Tarja uma espécie de calafrio, e ela se aprumou com a espada em riste, imaginando o implausível: que a elfa havia entrado em sua mente, ainda que não fossem adversárias naquele combate, e que completara seus pensamentos a respeito de Gwyll. E com a palavra certa, pois esquivar-se era de fato o que ele vinha fazendo. Vergena, no entanto, logo deu a entender que estava explicando as táticas de defesa a um aprendiz, e assim que concluiu a explicação mandou que todos ficassem a postos, prontos para iniciar o combate em ambos os níveis.
       - Lembrem-se, todos vocês: o objetivo é trocar golpes e não evitá-los, muito menos ferir o oponente. Só têm de atingi-lo com seu pensamento e bloqueá-lo para evitar que faça o mesmo. Tomem cuidado, principalmente os mais velhos: não quero que ninguém saia daqui assustado e em lágrimas como da última vez.
        - Era minha mãe! – justificou-se um garoto, olhando feio para a menina que iria duelar com Tarja. Alertada, a meio-elfa baniu os dois rapazes que brigavam em sua mente e se concentrou, criando uma barreira que a protegeria daquele tipo de golpe bruto.
      - Prontos? Já! – bradou Vergena. No instante seguinte, nove pares de lâminas se cruzavam, e os olhos de cada aprendiz penetravam como adagas no olhar do companheiro à sua frente. Tarja sentiu a mente de Mysa chegar perto da sua, ameaçá-la com pensamentos sombrios. Era como um polvo a estender seus tentáculos, que ela teria cortado de uma vez se aquela fosse uma inimiga de verdade. Em vez disso, usou apenas um escudo, protegendo sua mente da invasão ao mesmo tempo que espicaçava a garota com algo incômodo, porém não doloroso: a ideia de que todos, desde Vergena até o aprendiz mais novo, tinham parado o que faziam para observá-la.
      A sugestão foi tão forte que a menina baixou a espada, olhando atarantada para todos os lados, até que Tarja se desse por satisfeita e relaxasse a pressão. A elfa percebeu o que fazia e abanou a cabeça, contrariada, uma onda de rubor crescendo como uma rosa em cada face.
       - Que boba que eu sou! – exclamou, passando a mão muito branca pela testa.
      - Você foi bem. Quase conseguiu me pegar com sua nuvem negra – disse Tarja. Ela também baixara a espada, acreditando que o combate havia chegado ao fim, e desfizera o escudo mental... o que provou ser um erro, assim que a garota mais nova subitamente a encarou com olhos que pareciam diamantes.    
       Então, o novo ataque. Sem ódio, talvez até sem raiva, uma estocada fria e bem calculada no ponto mais sensível de sua mente. Despreparada, Tarja vacilou, ergueu como pôde um escudo precário, mas não conseguiu deter a torrente escura que invadiu seus pensamentos, trazendo imagens de um futuro onde tudo era solidão e fracasso.
      A nova Escola em Riverast, os mestres arrogantes, a casa fria que ela dividia com um grupo de estranhos. Perguntas ignoradas, noites solitárias, o olhar magoado e furioso de Razek, que se afastava de novo e agora para sempre. A horrível sensação de angústia ao falhar diante de todos no teste do Quinto Círculo. E o tempo todo, enquanto ela afundava mais e mais, a presença de Gwyll, braços cruzados a espreitá-la das sombras, assistindo a sua queda e rindo... Rindo...
      - Não! Ele não! – gritou a moça, em desespero. Suas mãos, que na visão estavam vazias, golpearam com força o rosto de Gwyll, arrancando-lhe um gemido de dor. Exclamações de alarme irromperam no anfiteatro, e alguns dos magos sentados nos degraus mais baixos correram para formar um círculo ao seu redor. Uma mulher, que usava uma couraça sobre a túnica, apertou-a com força contra si; Tarja se debateu, mas os braços da mulher continuaram a envolvê-la, e várias vozes antes desdenhosas agora falavam suavemente, diziam tudo bem, você está bem, pode voltar, fique conosco, aqui e agora.
      Um rosto humano se destacou então entre as faces indistintas no círculo: um homem grande, de olhos compassivos e mãos hábeis que pousaram na testa e no plexo solar de Tarja. Queimou, num primeiro momento, mas o segundo lhe trouxe um alívio indescritível, e ela relaxou nos braços que a sustinham, ao mesmo tempo que reconhecia as feições do homem à sua frente.
     - Padraig? – indagou, a voz ainda insegura. O rapaz sorriu, devolvido num instante aos seus dezesseis anos, e a maga com a couraça relaxou seu aperto, falando com a voz de sua companheira de quarto.
        - Você abriu mesmo a guarda, hein? Como se sente? Está de volta? Aqui, agora?
       - Sim, sim, estou de volta. Estou... bem – disse Tarja, olhando de esguelha para a garota com quem havia combatido. Estava chocada, nem tanto com a violência da aprendiz mais nova – alguns tinham de fato muito poder, e havia um momento em que este se descontrolava e se tornava destrutivo, como acontecera tempos atrás com Razek – mas consigo mesma, por ter-se deixado enganar e por se ver confrontada com tantos de seus temores mais arraigados. Sabia que teria de enfrentar alguns deles enquanto isso ainda estava a seu alcance – e foi pensando nisso, ao mesmo tempo que ouvia Vergena repreender Mysa por atacar alguém desprevenido, que Tarja notou os olhos de Gwyll pousados sobre ela. Ao contrário de Razek, que fora o primeiro a acorrer e agora a abraçava pelos ombros, o jovem de cabelos espetados se mantinha a distância, fitando-a como se esperasse o desenrolar dos fatos... Ou uma oportunidade para, enfim, falarem às claras sobre o que incomodava a ambos?
         Esse seria um combate ao qual não poderiam se esquivar.

         Continua...

Parte 2

Parte 4

sexta-feira, 20 de junho de 2014

O Passo Além do Círculo - Cap. 2: Mago e artista



           Se é verdade que os travesseiros dão conselhos, os de Lear deviam ter passado a noite sussurrando trechos de drama e canções de trovador. Ao despertar, ele sentia uma vontade premente de visitar a Ala Violeta. E como não tivesse nenhuma aula ou compromisso marcado, foi para lá assim que terminou o desjejum, sem ter falado com ninguém do Terceiro Círculo nem visto qualquer dos mestres no refeitório.
           A Ala Violeta era a mais nova e movimentada do Castelo das Águias. Tinha uma torre, um anfiteatro e oficinas que pertenciam a artistas e artesãos contratados em caráter permanente, mas sua configuração era mutável, com palcos, galpões e tendas que surgiam e desapareciam de acordo com a necessidade do momento. Um ourives, por exemplo, podia dar espaço a um entalhador na estação seguinte; quando chovia, os ensaios de teatro aconteciam no galpão dos pintores, e onde quer que os olhos pousassem havia um jovem andando sobre as mãos ou fazendo malabarismo. Segundo Camdell, um dos fundadores da Escola – e ainda hoje seu mentor -, a concentração nesses exercícios ajudava os aprendizes a desenvolver seus poderes, e a prática era exigida até dos que já tinham nascido com o Dom. No entanto, o tempo que passavam na Ala Violeta ia diminuindo conforme avançavam nos estudos... e a Magia ocupava o lugar que pertencera à Arte.
           Lear era um dos poucos a amar igualmente as duas.
       A maior parte das oficinas estava fechada, mas havia um grande grupo reunido à entrada do anfiteatro: uma dezena de alunos do Primeiro Círculo, o marioneteiro Mestre Tomas, os professores de Música e Sagas e Nardus, que olhava embevecido para a última. Com a trança negra dançando no ar e gestos eloquentes, Anna de Bryke parecia contar uma história, uma daquelas que faziam quem as ouvia se esquecer de respirar, mas ao chegar mais perto Lear percebeu que falava dos planos para o auto de inverno. Ao contrário de seu antecessor, que se limitava a explicar as sagas élficas e assegurar que decorassem os trechos relativos aos rituais, ela se envolvera desde o início com os eventos da Ala Violeta, promovera uma revolução ao falar das tradições humanas na festa de solstício de verão e só não fizera o mesmo no equinócio de outono porque a celebração a ocupara de outra forma, incluindo os ritos de seu casamento.
          A união entre os mestres conhecidos como Carrasco e Risonha dera ensejo a muitas brincadeiras na Ala Branca, uma das quais ameaçava virar lenda ao se espalhar entre os aprendizes mais novos: Anna de Bryke era a pessoa mais corajosa da Escola. Não que ela se arriscasse em rituais perigosos ou escalasse a Montanha das Águias quando elas protegiam os ovos. Mas era preciso muita coragem para abrir os olhos e dar de cara com Kieran de Scyllix.
        A imagem dos dois acordando no mesmo quarto trouxe uma ideia à mente de Lear, e foi com as esperanças renovadas que ele cumprimentou os mestres e colegas. Conteve sua ansiedade por tempo suficiente para ouvir Urien explicar o porquê de preferir sinos a címbalos e deu um leve soco no ombro do Ruivo, um moleque espigado de seus treze anos, quando este lhe contou que fora admitido no Segundo Círculo. Então, voltou-se para Anna, que sorria ouvindo o garoto contar vitória.
          - Podemos dar uma palavrinha? – pediu, indicando com um gesto que desejava falar a sós. Anna o olhou com surpresa, mas assentiu, e os dois se afastaram alguns passos, até que não pudessem mais ser ouvidos pelo resto do grupo.
          - E agora diga. – Anna se virou abruptamente para ele. – É o papel de Senhor da Luz o que está querendo, não é? Você sabe que ainda estamos em dúvida, mas...
        - Não é sobre o auto, Mestra Anna – Lear interrompeu, as palavras como sempre lhe soando estranhas: ela era a Mestra de Sagas, mas era mais nova que ele. – O fato é que estou muito preocupado com o que vão decidir sobre mim, se vou ser indicado para Riverast... Então, não me leve a mal, mas será que Mestre Kieran não comentou alguma coisa? Algo que possa antecipar, sem que isso cause problemas?
         - Ah. Bom, sinto muito, mas acho que não. – Anna pensou um pouco, depois prosseguiu. – A reunião foi interrompida com a chegada de um mensageiro. Kieran recebeu cinco ou seis cartas, mas isso não foi nada comparado ao que chegou para Finn e Thalia. Eles queriam ler tudo antes de se reunirem de novo, após o almoço de hoje.
           - Mas as cartas de Mestre Kieran...?
           - Ele já leu, e só falou sobre uma delas, que não se referia aos aprendizes da Escola. Mas o que estou querendo dizer é que, se alguém consultou os mestres de Riverast a seu respeito, deve ter sido Finn, pois é dele que você vai receber sua espada. Os mestres de Magia da Forma...
           - Espere! Vou receber a espada? – O coração do rapaz deu um salto, pôs-se a bater acelerado. – Vou recebê-la agora? Isso é certo?
          - Ah, Lear, sinto muito, eu... eu não posso dar certeza absoluta – desculpou-se Anna. – Mas diria que as chances são muito grandes, pois Finn está empenhado, e se Kieran realmente se opusesse eles estariam estranhos um com o outro. Eu sempre percebo essas coisas.
        “ Sim, só não percebe o pobre enamorado que já compôs tantas canções em sua homenagem”, pensou Lear, lançando um olhar a Nardus. O jovem de cabelos crespos se apaixonara à primeira vista pela Mestra de Sagas, mas, tímido que era, jamais trocara uma palavra com ela que não fosse sobre a música tocada nos eventos da Escola. Quase afundara em desespero ao saber que ela se tornara a prometida de Mestre Kieran. Agora parecia conformado, mas sua expressão, sempre que ela estava por perto, deixava claro que a moça continuava a fasciná-lo. Não havia outra razão para que encarasse com tanta bonomia a ideia de ficar mais um ano na Escola.
         - Oh, Lear. Não tem com que se preocupar – disse Anna, com um sorriso maroto. – Você vai receber a espada, tenho certeza. Ainda outro dia, Kieran comentou que vai sentir sua falta quando você partir.
           - Ele? Só se for porque não vai ter mais ninguém a quem dar tarefas extras.
          - Que é isso! Todos nós vamos sentir saudades. Não é mesmo, Mestre Tomas? – Anna ergueu a voz, dirigindo-se ao marioneteiro.
          - Se vamos! Um rapaz com esse talento! – disse Tomas, e se aproximou, alisando os ralos fios ruivos que lhe cobriam a calva. – Espero que ainda fique tempo suficiente para ajudar com o auto; do jeito que estamos planejando, é quase impossível fazer sem você.
          - Claro, mestre! Pode contar comigo – retrucou Lear, aprumando o corpo. Ouvir aquilo lhe fizera bem, embora não fosse o bastante para afastar sua apreensão; talvez os magos não lhe dessem muito valor, mas os artistas o admiravam, e isso já era alguma coisa. Seus encantos eram usados em espetáculos, sim, mas revelavam um grande poder; era preciso ser um mago bem treinado para distinguir suas ilusões da realidade. Talvez alguém em Riverast enxergasse aquilo como uma vantagem. Por outro lado, a Cidade dos Magos era bem maior que Vrindavahn. Devia ter alguns teatros, como os que havia em Madrath quando ele era criança, e Lear poderia frequentá-los nas horas vagas. Isso, é claro, se os seus futuros mestres não percebessem quem ele era e solicitassem sua participação nos eventos, dando um novo brilho aos rituais da Escola de Magia.
            E então, como sempre, a sorte iria sorrir para Lear Encanta-Dragões.



Continua...

Parte 1
Parte 3

quinta-feira, 12 de junho de 2014

O Passo Além do Círculo - Cap. 1 : De espiões e expectativas



           A reunião que deveria decidir vários destinos foi suspensa após a primeira hora. Do seu posto de observação – uma janela no comprido corredor que conduzia ao refeitório -, Tarja viu o criado entrar na sala em que os mestres de Magia confabulavam e, depois de uma saudação desajeitada, dizer algo que fez todos os sete se levantarem como um só. Sem correr, mas imprimindo certa urgência a seus passos, eles deixaram a sala e enveredaram pelo corredor que levava à cozinha, carregando livros e papéis, mas deixando jarras e bandejas para serem recolhidas pelo empregado... o qual, para o divertimento da moça, comeu um punhado de nozes e saboreou com todo vagar uma taça de vinho antes de começar a tirar a mesa.
          Tarja deixou a janela e se encaminhou aos alojamentos, atravessando o refeitório e um dos pátios internos para chegar à escada. Passou pelo segundo piso e, após hesitar por uns momentos diante da porta de Razek, subiu os degraus estreitos que davam acesso à torre.
           Dois anos antes, quando aquele intragável rapaz de Casa Nobre com quem ela vivia partira para Riverast, Vergena surpreendera a amiga mais nova ao chamá-la para partilhar seu quarto. O convite fora duas vezes bem-vindo, pela oportunidade de estreitar os laços com Vergena – que ela admirava desde os primeiros tempos na Escola – e por conduzi-la ao melhor quarto de todo o alojamento. Elas dispunham de lareira própria, de uma pequena casa de banho anexa e de uma bela vista para as montanhas. Além disso, eram vizinhas de Lear e Gwyll, cujo aposento era um verdadeiro centro de convívio entre os aprendizes do Terceiro Círculo. Tarja, ao se mudar, ainda estava no Segundo, e fora uma espécie de privilégio participar daquelas reuniões regadas a chá e vinho, das brincadeiras acerca dos colegas e mestres e até mesmo das discussões que irrompiam em torno de qualquer polêmica. Era um círculo à parte dentro da Escola, um lugar de atmosfera mutável, mas no qual ela sempre se sentira à vontade.
          E agora, de repente, seus companheiros de torre haviam chegado ao fim daquela etapa, e estavam prontos para partir.
             E cada um dos três, à sua maneira, lhe faria falta.
           A porta do seu quarto estava aberta, assim como o baú em que Vergena vinha arrumando seus livros e outros objetos, mas o aposento estava vazio. Tarja olhou para o outro lado do pequeno corredor e viu os amigos reunidos no quarto dos rapazes, enchendo taças de vinho que mantinham aquecido sobre um braseiro. Erdon, outro candidato a concluir o aprendizado, também estava lá, deitado na cama de Lear e fitando os pequenos sóis pintados no teto. Lembranças que, provavelmente, os próximos habitantes do quarto iriam apagar.
           - Tarja! Como estão as coisas? – indagou Lear, assim que ela entrou no quarto. – Não vá me dizer que eles já terminaram!
           - Não, mas fizeram uma pausa. Um criado foi chamá-los. – Tarja se sentou ao lado de Gwyll e pegou uma taça de vinho. – E saíram levando os papéis, acho que não pretendiam voltar à sala tão cedo.
           - Será? Por que você não ficou mais um pouco?
        - Sinceramente! Ela estava vigiando a sala para você! – replicou Vergena, as sobrancelhas se unindo sobre os grandes olhos oblíquos. – Ficou à janela, de pé, durante mais de uma hora, quando podia estar fazendo alguma coisa mais divertida! O que mais você queria?
           - Ela ficou por mim também – disse Gwyll, em tom conciliador.
         A resposta se limitou a um olhar irônico por parte da elfa. Assim como ela, que assumiria o posto de Mestra das Águias em Scyllix, Gwyll já tinha sido confirmado como um dos aprendizes a receber sua espada, e ainda tinha todas as chances de ser aceito para prosseguir os estudos na Escola de Magia de Riverast. Não precisava de alguém que espionasse a janela da sala dos mestres e o informasse de cada gesto de Finn ou carranca de Kieran. Lear, no entanto, não tinha certeza de que conseguiria nenhuma dessas coisas, e a ansiedade começara a levar a melhor sobre ele nos últimos dias. Daria tudo para saber o que estava sendo dito a seu respeito.
          - Pelo que pude perceber, não houve discussão até agora – disse Tarja. – O que quer que tenham conversado, estão todos de acordo. Mas foram Mestres Algias e Sophia que falaram mais. Deve ser sobre a ida de Galdor e Lahini para a Escola de Artes da Cura.
        -Talvez – Gwyll concordou. – Eles já foram aceitos, bastando a recomendação de Mestra Sophia. Sabem até qual a casa em que vão se alojar, uma tal de Solar das Ervas. Deve ser meio sem graça, só com magos curandeiros... espero que eu consiga um lugar mais interessante, porque...
        - Sim! A sua casa vai ser mais interessante, de forma que você nem sinta falta daqui – disse Tarja, num rompante. Gwyll teve um momento de surpresa, mas em seguida compreendeu e desviou o rosto de faces avermelhadas. Tarja fez o mesmo, mordendo os lábios para se impedir de continuar. Aquele não era um assunto para ser tratado ali.
    - Pessoal, tenho novidades! – Uma voz suave anunciou a chegada de Nardus, o último dos aprendizes cujo futuro estava na berlinda. – Eu estava na cozinha e ouvi quando mandaram servir uma refeição para um novo hóspede. – É um emissário de Riverast! E ele trouxe um baú cheio de cartas e encomendas para os mestres!
       - Aaaai! É agora que vão demorar a se reunir de novo! – Erdon estapeou a própria testa, fez uma careta. – E eu aposto que entre essas cartas há algumas para Mestre Finn, dizendo que não têm interesse em receber nenhum nascido sem o Dom!
      - Bobagem – contestou Vergena. – Se você e Nardus conseguirem a espada, estão iniciados, podem prosseguir com os estudos para os círculos superiores. Isso foi assegurado por Mestre Camdell ao fundar esta Escola.
      - É verdade, Erdon. Devíamos nos preocupar se vamos ter a espada ou não. Da minha parte, vou entender se me mandarem esperar mais um ano – disse Nardus, coçando o queixo onde despontava uma barba rala. – Na verdade, acho que até seria bom... se eu pudesse estudar mais ritualística, estando ainda aqui, com Mestre Finn e Mestre Urien...
       - E a Mestra de Sagas, claro – disse Erdon, com malícia.
     Nardus enrubesceu violentamente e não respondeu. Tarja e Vergena trocaram um olhar significativo e Gwyll balançou a cabeça, mas Lear não pareceu ter percebido, envolvido como estava em seus próprios problemas e dramas.
      - Estou aqui há dez anos, mais tempo que qualquer um – lamentou ele. – Sou o aprendiz mais velho da Escola. Se ficar ainda mais, o que vai acabar acontecendo? Vou ter aulas com Padraig? Com a filha do Mestre Thorold? Sim, porque Tarja e o grupo que entrou com ela estão quase me alcançando. Quem sabe ainda levam a espada antes de mim.
       - Que nada! Precisamos de mais um ano, pelo menos – disse Tarja, para animá-lo. – Nossa meta é entrar para Riverast, e Mestre Kieran prometeu nos recomendar, mas temos que trabalhar duro nessa última fase. Precisamos nos aprimorar no combate mágico e fazer meditação, porque ainda fico muito dispersa, enquanto ele...
       - “Ele” é Razek, não é? – interrompeu Vergena. – Porque o restante do seu grupo vai precisar de mais do que um ano. Mas, se está falando só de vocês dois, não se discute.
       - Claro que é só dos dois. São um casal, não são? Tarja e o Esquentadinho – brincou Erdon.
      A frase soou sem maldade, fazendo os outros sorrirem, à exceção de Gwyll. Este apenas se voltou e olhou para Tarja... não com ciúmes, o que seria inesperado, nem com malícia, o que a deixaria irritada, mas no fundo não mudaria as coisas. Não, em vez disso ela viu em seus olhos a pior coisa que poderia encontrar.
        Alívio.

        ********

        Quem leu o livro ou acompanha o blog deve ter percebido que este conto se passa alguns meses após os acontecimentos relatados em O Castelo das Águias. Alguns aprendizes do Terceiro Círculo se preparam para receber o título de magos (num ritual em que recebem uma espada e uma tiara das mãos do mestre com quem têm mais afinidade) e, enquanto uns estão tranquilos, outros roem as unhas de ansiedade para saber o que será decidido a seu respeito.
         Este conto alternará a perspectiva de Tarja, que ainda não está preparada para deixar a Escola, e um dos que alimentam expectativas, Lear Encanta-Dragões. Espero que gostem e prossigam a leitura nas próximas postagens! 


Parte 2

sábado, 7 de junho de 2014

A Escola de Magia de Riverast




Riverast é a cidade que sedia a tradicional Escola de Magia, fundada por elfos brilhantes e que, desde a criação da Liga das Terras Férteis, aceita jovens magos humanos e meio-elfos. Também sedia uma Escola de Artes da Cura, ligada à de Magia mas com regras próprias, e ainda a administração do Templo, a religião humana do Deus Único, na região Sul de Athelgard. Assim, dentre as Onze Cidades, pode-se dizer que Riverast é a que se ocupa tanto das coisas da Mente quanto as da Alma, passando pelo equilíbrio do corpo físico.

A Escola de Magia não recebe aprendizes no início da senda. Estes, tradicionalmente, são orientados de forma individual por mestres mais experientes e progridem até o nível do Terceiro Círculo, quando recebem uma espada e uma tiara, sendo considerados, de fato, como magos. A partir daí, podem continuar avançando por conta (e risco) próprios ou ser admitidos entre os alunos da Escola, o que se faz mediante a recomendação dos mestres e uma série de testes muitas vezes insólitos. O que devem estudar não se restringe a temas diretamente ligados à Magia, mas àquilo que os tornará mais conscientes e equilibrados: Kieran de Scyllix, por exemplo, precisou servir chá à Arquimestra que o entrevistou na admissão e teve de estudar poesia e música a fim de chegar ao Quinto Círculo, quando voltou a sua terra natal.

A Ascensão no interior dos Círculos de Magia é individual também, variando muito de mago para mago. Os Círculos, até o ponto em que existem iniciações no mundo físico, são nove; depois existem outros só conhecidos pelos mestres que atingiram o Nono Grau, que atualmente são muito poucos (um deles é Camdell, que fundou a Escola de Artes Mágicas no Castelo das Águias, em Vrindavahn). A cada círculo aumentam as exigências, inclusive na vida pessoal dos magos, com restrição de atividades, alimentação, casamento e muitas outras.

Ao longo de sua trajetória, os magos podem continuar a receber instrução em Riverast ou, o que é muito mais comum - a não ser entre os que se tornam mestres na Escola de Magia - ficar até a iniciação no Quinto Círculo, quando partem para se estabelecer em outra localidade, retornando periodicamente para os testes de ascensão. Estudantes entre o Terceiro e o Quinto Círculo podem se alojar nas casas cedidas à Escola pelo Conselho de Riverast, assim convivendo com outros colegas, mas num regime diferente daquele em que vivem os aprendizes em Vrindavahn. Kieran, por exemplo, viveu numa casa chamada Três Chaminés. Os outros mestres do Castelo com passagem por Riverast são Camdell (que chegou a ser um mestre na Escola de Magia), Finn, Thalia e Sophia, que fez a maior parte do aprendizado na Escola de Artes da Cura.

Aqui começaremos a postar um conto sobre os aprendizes prestes a deixar o Castelo das Águias, alguns dos quais têm como objetivo prosseguir seus estudos em Riverast. Espero que vocês os acompanhem nesta jornada!

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A Escola está sediada num palácio élfico que lembra um pouco o Palais Idéal de Ferdinand Cheval.

O sistema de hospedagem dos estudantes foi inspirado nas repúblicas da Universidade de Ouro Preto - MG. Porque Athelgard também respira os ares do Brasil. :)