sexta-feira, 20 de junho de 2014

O Passo Além do Círculo - Cap. 2: Mago e artista



           Se é verdade que os travesseiros dão conselhos, os de Lear deviam ter passado a noite sussurrando trechos de drama e canções de trovador. Ao despertar, ele sentia uma vontade premente de visitar a Ala Violeta. E como não tivesse nenhuma aula ou compromisso marcado, foi para lá assim que terminou o desjejum, sem ter falado com ninguém do Terceiro Círculo nem visto qualquer dos mestres no refeitório.
           A Ala Violeta era a mais nova e movimentada do Castelo das Águias. Tinha uma torre, um anfiteatro e oficinas que pertenciam a artistas e artesãos contratados em caráter permanente, mas sua configuração era mutável, com palcos, galpões e tendas que surgiam e desapareciam de acordo com a necessidade do momento. Um ourives, por exemplo, podia dar espaço a um entalhador na estação seguinte; quando chovia, os ensaios de teatro aconteciam no galpão dos pintores, e onde quer que os olhos pousassem havia um jovem andando sobre as mãos ou fazendo malabarismo. Segundo Camdell, um dos fundadores da Escola – e ainda hoje seu mentor -, a concentração nesses exercícios ajudava os aprendizes a desenvolver seus poderes, e a prática era exigida até dos que já tinham nascido com o Dom. No entanto, o tempo que passavam na Ala Violeta ia diminuindo conforme avançavam nos estudos... e a Magia ocupava o lugar que pertencera à Arte.
           Lear era um dos poucos a amar igualmente as duas.
       A maior parte das oficinas estava fechada, mas havia um grande grupo reunido à entrada do anfiteatro: uma dezena de alunos do Primeiro Círculo, o marioneteiro Mestre Tomas, os professores de Música e Sagas e Nardus, que olhava embevecido para a última. Com a trança negra dançando no ar e gestos eloquentes, Anna de Bryke parecia contar uma história, uma daquelas que faziam quem as ouvia se esquecer de respirar, mas ao chegar mais perto Lear percebeu que falava dos planos para o auto de inverno. Ao contrário de seu antecessor, que se limitava a explicar as sagas élficas e assegurar que decorassem os trechos relativos aos rituais, ela se envolvera desde o início com os eventos da Ala Violeta, promovera uma revolução ao falar das tradições humanas na festa de solstício de verão e só não fizera o mesmo no equinócio de outono porque a celebração a ocupara de outra forma, incluindo os ritos de seu casamento.
          A união entre os mestres conhecidos como Carrasco e Risonha dera ensejo a muitas brincadeiras na Ala Branca, uma das quais ameaçava virar lenda ao se espalhar entre os aprendizes mais novos: Anna de Bryke era a pessoa mais corajosa da Escola. Não que ela se arriscasse em rituais perigosos ou escalasse a Montanha das Águias quando elas protegiam os ovos. Mas era preciso muita coragem para abrir os olhos e dar de cara com Kieran de Scyllix.
        A imagem dos dois acordando no mesmo quarto trouxe uma ideia à mente de Lear, e foi com as esperanças renovadas que ele cumprimentou os mestres e colegas. Conteve sua ansiedade por tempo suficiente para ouvir Urien explicar o porquê de preferir sinos a címbalos e deu um leve soco no ombro do Ruivo, um moleque espigado de seus treze anos, quando este lhe contou que fora admitido no Segundo Círculo. Então, voltou-se para Anna, que sorria ouvindo o garoto contar vitória.
          - Podemos dar uma palavrinha? – pediu, indicando com um gesto que desejava falar a sós. Anna o olhou com surpresa, mas assentiu, e os dois se afastaram alguns passos, até que não pudessem mais ser ouvidos pelo resto do grupo.
          - E agora diga. – Anna se virou abruptamente para ele. – É o papel de Senhor da Luz o que está querendo, não é? Você sabe que ainda estamos em dúvida, mas...
        - Não é sobre o auto, Mestra Anna – Lear interrompeu, as palavras como sempre lhe soando estranhas: ela era a Mestra de Sagas, mas era mais nova que ele. – O fato é que estou muito preocupado com o que vão decidir sobre mim, se vou ser indicado para Riverast... Então, não me leve a mal, mas será que Mestre Kieran não comentou alguma coisa? Algo que possa antecipar, sem que isso cause problemas?
         - Ah. Bom, sinto muito, mas acho que não. – Anna pensou um pouco, depois prosseguiu. – A reunião foi interrompida com a chegada de um mensageiro. Kieran recebeu cinco ou seis cartas, mas isso não foi nada comparado ao que chegou para Finn e Thalia. Eles queriam ler tudo antes de se reunirem de novo, após o almoço de hoje.
           - Mas as cartas de Mestre Kieran...?
           - Ele já leu, e só falou sobre uma delas, que não se referia aos aprendizes da Escola. Mas o que estou querendo dizer é que, se alguém consultou os mestres de Riverast a seu respeito, deve ter sido Finn, pois é dele que você vai receber sua espada. Os mestres de Magia da Forma...
           - Espere! Vou receber a espada? – O coração do rapaz deu um salto, pôs-se a bater acelerado. – Vou recebê-la agora? Isso é certo?
          - Ah, Lear, sinto muito, eu... eu não posso dar certeza absoluta – desculpou-se Anna. – Mas diria que as chances são muito grandes, pois Finn está empenhado, e se Kieran realmente se opusesse eles estariam estranhos um com o outro. Eu sempre percebo essas coisas.
        “ Sim, só não percebe o pobre enamorado que já compôs tantas canções em sua homenagem”, pensou Lear, lançando um olhar a Nardus. O jovem de cabelos crespos se apaixonara à primeira vista pela Mestra de Sagas, mas, tímido que era, jamais trocara uma palavra com ela que não fosse sobre a música tocada nos eventos da Escola. Quase afundara em desespero ao saber que ela se tornara a prometida de Mestre Kieran. Agora parecia conformado, mas sua expressão, sempre que ela estava por perto, deixava claro que a moça continuava a fasciná-lo. Não havia outra razão para que encarasse com tanta bonomia a ideia de ficar mais um ano na Escola.
         - Oh, Lear. Não tem com que se preocupar – disse Anna, com um sorriso maroto. – Você vai receber a espada, tenho certeza. Ainda outro dia, Kieran comentou que vai sentir sua falta quando você partir.
           - Ele? Só se for porque não vai ter mais ninguém a quem dar tarefas extras.
          - Que é isso! Todos nós vamos sentir saudades. Não é mesmo, Mestre Tomas? – Anna ergueu a voz, dirigindo-se ao marioneteiro.
          - Se vamos! Um rapaz com esse talento! – disse Tomas, e se aproximou, alisando os ralos fios ruivos que lhe cobriam a calva. – Espero que ainda fique tempo suficiente para ajudar com o auto; do jeito que estamos planejando, é quase impossível fazer sem você.
          - Claro, mestre! Pode contar comigo – retrucou Lear, aprumando o corpo. Ouvir aquilo lhe fizera bem, embora não fosse o bastante para afastar sua apreensão; talvez os magos não lhe dessem muito valor, mas os artistas o admiravam, e isso já era alguma coisa. Seus encantos eram usados em espetáculos, sim, mas revelavam um grande poder; era preciso ser um mago bem treinado para distinguir suas ilusões da realidade. Talvez alguém em Riverast enxergasse aquilo como uma vantagem. Por outro lado, a Cidade dos Magos era bem maior que Vrindavahn. Devia ter alguns teatros, como os que havia em Madrath quando ele era criança, e Lear poderia frequentá-los nas horas vagas. Isso, é claro, se os seus futuros mestres não percebessem quem ele era e solicitassem sua participação nos eventos, dando um novo brilho aos rituais da Escola de Magia.
            E então, como sempre, a sorte iria sorrir para Lear Encanta-Dragões.



Continua...

Parte 1
Parte 3

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