quinta-feira, 26 de junho de 2014

O Passo Além do Círculo - Cap. 3: Golpe Baixo


     - Pessoal, hoje sou eu que vou conduzir o treino. Vai ser bem leve, porque a maioria de nós está com as restrições do trabalho mágico. Preparados?
      Os aprendizes se perfilaram lado a lado diante de Vergena. Cada um portava uma espada de treino, de ponta e gume embotados, e um bastão de poder, que eles mesmos haviam confeccionado ao longo do Segundo Círculo. A tarde de inverno estava fria, mas os jovens se encontravam num dos pátios descobertos, e alguns tinham a pele e os pelos arrepiados. Não Razek, é claro; com sua aura vermelha, ele irradiava calor, hoje ainda mais do que de costume, talvez por antecipar o prazer do combate mágico. Era nessas horas que Tarja mais gostava de estar ao seu lado.
      Esticando o pescoço, ela deu uma olhada em Gwyll na ponta da fila. Como Mestre Kieran, ele usava um bastão de aveleira, mas a semelhança parava aí; o rapaz dificilmente parecia zangado ou mesmo aborrecido, e Tarja não se lembrava de tê-lo visto brigar com alguém. Era o aprendiz mais talentoso da Escola, ou pelo menos o que harmonizava melhor a Forma e o Pensamento, tanto que não se sabia qual dos mestres lhe entregaria a espada. E, por um tempo, havia sido seu namorado, não de forma exclusiva, mas num arranjo que agradava a ambos... e que ela pensara poder prolongar, cruzando os mares do tempo e da distância, até que se reencontrassem na Escola de Riverast.
       No entanto, Gwyll parecia empenhado em queimar todas as pontes.
      Vergena andava ao longo da fileira, juntando os colegas em duplas. Gwyll ficou com Padraig, um jovem humano surpreendentemente adiantado para o Segundo Círculo; Tarja pensou que treinaria com Razek, mas Vergena pediu ao rapaz que ajudasse um aprendiz recém-chegado ao grupo de combate.
      - E você treina com Mysa – disse, dirigindo-se a Tarja e apontando para uma garota elfa com um bastão que parecia de madeira recém-cortada.
       - Por que não põe os dois juntos? – sugeriu a amiga.
      - E você ficaria com Razek? Não, os novatos vão aprender mais se combaterem com colegas mais adiantados. Além disso, você e Razek são próximos demais, se conhecem muito bem... é bom que trabalhem juntos, mas não que entrem na mente um do outro.
      - Iam ver um ao outro – disse um aprendiz meio-humano, com uma risadinha. – Ia ser como quebrar um espelho.
      - Nada de quebrar. Já disse que hoje o treino é leve – replicou Vergena. – Se alguma coisa acontecer com vocês, eu serei a responsável perante Mestre Kieran.
         - Por que ele não está aqui hoje? – perguntou Mysa.
      - Porque está na reunião com Mestre Finn e os outros, falando de mim, de Gwyll e dos demais postulantes à espada e à tiara. Mais alguma pergunta?
       - Eu tenho – disse um menino. – Só por curiosidade, por que você preferiu virar Mestra das Águias a ir para Riverast?
       - Porque é uma boa oportunidade e não vou tê-la de novo. Quero experiência – disse Vergena. – Riverast só me proporcionaria estudo e mais estudo. Isso não é para mim e sim para gente paciente, como o Gwyll.
        - Então o Razek não vai – tornou o garoto, com malícia. – Ele é impaciente, esquentado...
       - E daí? Mestre Kieran estudou lá e ele também é assim – replicou, entre dentes, o aprendiz mais velho. – Eu e Tarja vamos sim para Riverast, dentro de um ano ou, no máximo, um ano e meio. Vamos ficar na Mantos Azuis ou na Três Chaminés. Podem apostar.
       Olhou dentro dos olhos de Tarja, como se quisesse lhe assegurar que seria assim, e deu um sorriso satisfeito quando ela assentiu. Tal como Gwyll, Razek fizera planos, calculara cada passo dali para a frente, mas deixando claro que não pretendia caminhar sozinho. Ao longo de todo aquele ano ele se empenhara em trazer Tarja de volta para sua vida, começando por retomar a cumplicidade que tinham no Primeiro Círculo – estremecida desde que ela se mudara para a torre – e em seguida avançando para algo eu oscilava entre a amizade e uma espécie de namoro todo feito de abraços e entendimentos tácitos. Gwyll era o parceiro dos beijos e das conversas, que eram sempre divertidas, cheias de brincadeiras e tiradas que a faziam rir. Já quando o assunto se aprofundava, e principalmente quando dizia respeito a eles dois...
        - Esquiva – disse Vergena de repente. A palavra causou em Tarja uma espécie de calafrio, e ela se aprumou com a espada em riste, imaginando o implausível: que a elfa havia entrado em sua mente, ainda que não fossem adversárias naquele combate, e que completara seus pensamentos a respeito de Gwyll. E com a palavra certa, pois esquivar-se era de fato o que ele vinha fazendo. Vergena, no entanto, logo deu a entender que estava explicando as táticas de defesa a um aprendiz, e assim que concluiu a explicação mandou que todos ficassem a postos, prontos para iniciar o combate em ambos os níveis.
       - Lembrem-se, todos vocês: o objetivo é trocar golpes e não evitá-los, muito menos ferir o oponente. Só têm de atingi-lo com seu pensamento e bloqueá-lo para evitar que faça o mesmo. Tomem cuidado, principalmente os mais velhos: não quero que ninguém saia daqui assustado e em lágrimas como da última vez.
        - Era minha mãe! – justificou-se um garoto, olhando feio para a menina que iria duelar com Tarja. Alertada, a meio-elfa baniu os dois rapazes que brigavam em sua mente e se concentrou, criando uma barreira que a protegeria daquele tipo de golpe bruto.
      - Prontos? Já! – bradou Vergena. No instante seguinte, nove pares de lâminas se cruzavam, e os olhos de cada aprendiz penetravam como adagas no olhar do companheiro à sua frente. Tarja sentiu a mente de Mysa chegar perto da sua, ameaçá-la com pensamentos sombrios. Era como um polvo a estender seus tentáculos, que ela teria cortado de uma vez se aquela fosse uma inimiga de verdade. Em vez disso, usou apenas um escudo, protegendo sua mente da invasão ao mesmo tempo que espicaçava a garota com algo incômodo, porém não doloroso: a ideia de que todos, desde Vergena até o aprendiz mais novo, tinham parado o que faziam para observá-la.
      A sugestão foi tão forte que a menina baixou a espada, olhando atarantada para todos os lados, até que Tarja se desse por satisfeita e relaxasse a pressão. A elfa percebeu o que fazia e abanou a cabeça, contrariada, uma onda de rubor crescendo como uma rosa em cada face.
       - Que boba que eu sou! – exclamou, passando a mão muito branca pela testa.
      - Você foi bem. Quase conseguiu me pegar com sua nuvem negra – disse Tarja. Ela também baixara a espada, acreditando que o combate havia chegado ao fim, e desfizera o escudo mental... o que provou ser um erro, assim que a garota mais nova subitamente a encarou com olhos que pareciam diamantes.    
       Então, o novo ataque. Sem ódio, talvez até sem raiva, uma estocada fria e bem calculada no ponto mais sensível de sua mente. Despreparada, Tarja vacilou, ergueu como pôde um escudo precário, mas não conseguiu deter a torrente escura que invadiu seus pensamentos, trazendo imagens de um futuro onde tudo era solidão e fracasso.
      A nova Escola em Riverast, os mestres arrogantes, a casa fria que ela dividia com um grupo de estranhos. Perguntas ignoradas, noites solitárias, o olhar magoado e furioso de Razek, que se afastava de novo e agora para sempre. A horrível sensação de angústia ao falhar diante de todos no teste do Quinto Círculo. E o tempo todo, enquanto ela afundava mais e mais, a presença de Gwyll, braços cruzados a espreitá-la das sombras, assistindo a sua queda e rindo... Rindo...
      - Não! Ele não! – gritou a moça, em desespero. Suas mãos, que na visão estavam vazias, golpearam com força o rosto de Gwyll, arrancando-lhe um gemido de dor. Exclamações de alarme irromperam no anfiteatro, e alguns dos magos sentados nos degraus mais baixos correram para formar um círculo ao seu redor. Uma mulher, que usava uma couraça sobre a túnica, apertou-a com força contra si; Tarja se debateu, mas os braços da mulher continuaram a envolvê-la, e várias vozes antes desdenhosas agora falavam suavemente, diziam tudo bem, você está bem, pode voltar, fique conosco, aqui e agora.
      Um rosto humano se destacou então entre as faces indistintas no círculo: um homem grande, de olhos compassivos e mãos hábeis que pousaram na testa e no plexo solar de Tarja. Queimou, num primeiro momento, mas o segundo lhe trouxe um alívio indescritível, e ela relaxou nos braços que a sustinham, ao mesmo tempo que reconhecia as feições do homem à sua frente.
     - Padraig? – indagou, a voz ainda insegura. O rapaz sorriu, devolvido num instante aos seus dezesseis anos, e a maga com a couraça relaxou seu aperto, falando com a voz de sua companheira de quarto.
        - Você abriu mesmo a guarda, hein? Como se sente? Está de volta? Aqui, agora?
       - Sim, sim, estou de volta. Estou... bem – disse Tarja, olhando de esguelha para a garota com quem havia combatido. Estava chocada, nem tanto com a violência da aprendiz mais nova – alguns tinham de fato muito poder, e havia um momento em que este se descontrolava e se tornava destrutivo, como acontecera tempos atrás com Razek – mas consigo mesma, por ter-se deixado enganar e por se ver confrontada com tantos de seus temores mais arraigados. Sabia que teria de enfrentar alguns deles enquanto isso ainda estava a seu alcance – e foi pensando nisso, ao mesmo tempo que ouvia Vergena repreender Mysa por atacar alguém desprevenido, que Tarja notou os olhos de Gwyll pousados sobre ela. Ao contrário de Razek, que fora o primeiro a acorrer e agora a abraçava pelos ombros, o jovem de cabelos espetados se mantinha a distância, fitando-a como se esperasse o desenrolar dos fatos... Ou uma oportunidade para, enfim, falarem às claras sobre o que incomodava a ambos?
         Esse seria um combate ao qual não poderiam se esquivar.

         Continua...

Parte 2

Parte 4

Nenhum comentário:

Postar um comentário