segunda-feira, 7 de julho de 2014

O Passo Além do Círculo - Cap. 4: Apenas uma Conversa de Dormitório



Entre conversas com os mestres na Ala Violeta, um almoço simples partilhado com Tomas e outros artistas e muitas congratulações – por fim, Anna se decidira a lhe dar o papel de Senhor da Luz  no auto de inverno -, Lear voltou à Ala Branca perto da sétima hora, a tempo justo para tomar um banho antes de jantar. Pensava, é claro, em se reunir aos colegas e perguntar pelas novidades, mas elas o esperavam quando chegou ao seu quarto: deitado em sua cama, Erdon mais uma vez olhava para o teto, recusando-se a se deixar consolar pelos três elfos que se espalhavam no chão e na cama de Gwyll.
- Um ano nem é tanto. Vale a pena sair daqui mais bem preparado – dizia Lahini, secundada pelo namorado, Galdor, ambos aprendizes de Artes da Cura. – Mestre Finn disse que ainda há chances de que o recomendem para Riverast.
- Mestre Finn queria me animar. E não adiantou! – lamentou-se Erdon. – Eu vi a cara do Carrasco! Ele quase não conseguia disfarçar o Sorrisinho do Mal! Ah, se eu tivesse o menor jeito para aquela droga de Combate Mágico...! Podia sair daqui antes dos vinte, como eu planejava. Mas não! Outro ano metido neste lugarejo em vez de uma cidade de verdade!
- Vou levar você a uma aldeia Odravas. Aí vai ver o que é de fato um lugarejo – disse Lahini.
- Mas então, Erdon, eles já decidiram? – Lear perguntou, sentindo a tensão crescer em seus músculos. – E só a seu respeito por enquanto?
- Não, também chamaram a nós três, Lahini, Vergena e eu – disse Galdor. – Mas não demorou quase nada.
- É, eles foram chamados por desencargo de consciência, e Gwyll, veja só que lindo, foi convidado a dar um passeio com o Carrasco amanhã de manhã – disse Erdon, com uma careta. – Eu tive que sentar à mesa diante de todos os mestres de Magia, e acreditem, não foi nada fácil. Tanto que esses dois aí ficaram na sala ao lado, me esperando com um chazinho calmante.
- Fizeram bem. Você estava tremendo feito vara verde quando saiu – replicou Vergena. – E Nardus vem aqui tomar um pouco do mesmo chá quando sair.
- Nardus? Ele está lá agora? – indagou Lear, cada vez mais preocupado. – Será que eles vão me chamar também?
- Não sei. Não disseram nada. – Erdon encolheu os ombros, a expressão sombria. – Mas, o que quer que digam, não será pior do que me disseram, que eu não estava pronto... Que tinha talento, mas não maturidade...
- Isso não é nenhum xingamento, você sabe – disse Lahini. – Já ouvi coisa parecida, e foi de Mestre Kieran, entre o Segundo e o Terceiro Círculos. Garanto que ele falou de um jeito bem menos suave.
- É, amigo. Sinto muito as coisas não terem saído como você queria – disse o Encanta-Dragões, batendo-lhe no ombro. – Mas ano que vem você recebe sua espada e vai direto para Riverast. Pode estar certo.
- Obrigado – resmungou Erdon. – Nardus também deve ficar. Uma pena: seria bom para ele ir embora logo e arranjar alguém que o fizesse esquecer a Mestra Anna. Sabem que ele chegou a ter esperança, antes de ela se comprometer com o Carrasco? Pura ilusão, coitado.
- Por que seria necessariamente uma ilusão? Os dois têm a mesma idade e ele não é aluno dela, embora seja da Escola, o que talvez vocês humanos vejam como um empecilho. Mas Anna não se importa com essas coisas – argumentou Lahini. – Ela é minha amiga, tanto quanto é de Mestra Sophia. Por que não poderia se interessar por um rapaz gentil e inteligente como Nardus?
- E por que ela haveria de querer um aprendiz quando pode ter o mestre? Mulheres não querem saber de beleza. Elas procuram o poder – disse Erdon, mas a exclamação indignada das duas moças o fez emendar: - Mulheres humanas, claro, não as elfas!
- Seja como for, está errado! Elfas ou humanas, ou meio-humanas como Anna, nós gostamos das pessoas pelo que elas são! – exclamou Lahini. – Onde você ouviu tamanha bobagem?
- De Mestre Urien, e não é bobagem – respondeu o rapaz. – Na maioria das vezes acho que ele tem razão. Vejam, não é que as mulheres só gostem de homens ricos ou coisa assim. Mas elas gostam dos que são respeitados, admirados, que têm voz de comando... Enfim, que têm algum tipo de poder. Mesmo que sejam feios como o Carrasco.
- Mestre Kieran não é tão feio assim – ponderou a moça. – Podia é não ter aquela cara de poucos amigos.
- Nem que vivesse sorrindo – replicou Erdon. – Ainda assim, seria feio que dói. Não acha, Vergena?
- Não sei, não faço ideia do que Lahini considera bonito. Para mim, todos os homens da sua raça são a mesma coisa: pelos demais, músculos demais, enfim, nada que me entusiasme. Mas o que você disse sobre as mulheres é ridículo, Erdon. Se já não estivesse tão desconsolado, eu despejaria este chá nos seus fundilhos.
Erdon, que estava deitado de bruços, levou as mãos para trás na mesma hora e protegeu o local. Os outros riram, desanuviando o ambiente, e foi nesse ponto que Nardus entrou no quarto.
- Oi, pessoal. Tenho novidades – disse, parecendo a um só tempo tranquilo e muito cansado. – Os mestres localizaram um especialista em música ritual, inclusive para ritos de cura, e ele precisa de um ajudante, por isso me perguntaram se eu queria o cargo. O sujeito é iniciado no Sexto Círculo, então posso ficar metade do ano com ele, ter mais um pouco de orientação e voltar para pegar minha espada. Ficando aqui, eles acham que meu progresso vai ser mais lento e que vou precisar de um ano inteiro. O que vocês fariam no meu lugar?
- Um ano a mais aqui ou meio ano com um estranho? Difícil – Lear balançou a cabeça. – Ele é humano? Você vai morar na casa dele?
- Meio-elfo, e vou me hospedar com ele sim, mas Mestre Urien o conhece bem e disse que vou gostar. Ele havia falado comigo a respeito – admitiu Nardus, aceitando uma caneca de chá. – Hoje de manhã, antes de você nos encontrar na Ala Violeta. Eu já sabia mais ou menos o que esperar da entrevista com os Sete.
- Bom, então você deve ter tido tempo para pensar – observou Galdor. O que disse a eles?
- O que esperavam ouvir. – Nardus se sentou na ponta da cama de Lear, deixou escapar um suspiro. – Se vieram com essa proposta, tiveram o trabalho de organizar tudo e até de se entender com Mestre Urien, foi por achar que era isso que eu devia fazer. Então, vou ficar para os ritos do solstício e a Noite dos Fogos, depois passar uns dias com minha família – e antes que termine o inverno vou estar em Glen Cadorn, uma vila perto de Bergenan, estudando com meu novo mestre.
- E no verão você retorna, e ainda pega a espada antes de mim – disse Erdon. – Não parece tão mau.
- Ainda mais se o mestre vai ensinar exatamente o que você quer aprender – reforçou Vergena. – Depois, será mais fácil se estabelecer, talvez trabalhando para o Conselho de alguma cidade. Quase todos promovem festas ao longo do ano, e um mago que entende de ritualística é sempre bem-vindo.
- E quanto a Riverast? Alguma chance de o recomendarem quando tiver a espada? – perguntou o Encanta-Dragões.
- Acho que não. Mas, se querem saber, não me importo – disse Nardus. – Na verdade, embora esteja me sentindo triste – bom, talvez não triste e sim meio vazio, é estranho – enfim, não estou contente, mas, a cada vez que penso no caso, mais me parece que essa é a escolha acertada. Quanto mais tempo eu ficar aqui, com o inverno e a chuva e certas pessoas...
- Pior para você. É, acho que está certo. – Lahini afagou-lhe o ombro. – Você tem mesmo que buscar outros ares, isso lhe fará bem.
- E eu fico aqui sozinho – resmungou Erdon -, dividindo o quarto com o Colm e sua mania de ler em voz alta.
- É um bom sujeito. E você ainda vai ter a Tarja, pelo menos.
- E talvez também a mim. Não sei de nada ainda – ajuntou Lear, ao que Nardus o encarou com um olhar intenso, cheio de reflexão.
- Ainda bem que falou. Eu já ia me esquecendo – disse ele. – Amanhã, à sétima hora, você deve estar no jardim da Ala Amarela para falar com Mestre Finn. Pelo lugar que ele escolheu, creio que vai ter mais gente. E eu acho – embora não possa afirmar – que vão servir uma bela proposta junto com o desjejum.


         Continua...

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