quinta-feira, 31 de julho de 2014

O Passo Além do Círculo: Cap. 6.5: Um Convite, um Desafio e um Futuro Possivelmente Brilhante



- Theran e eu estudamos juntos há mais de cinquenta anos e não nos perdemos desde então. Cada um seguiu seu caminho, e, nessas voltas que o mundo dá, ele acabou por regressar a Riverast e se tornar um dos mestres associados à Escola. Recentemente, um de seus antigos aprendizes lhe escreveu a respeito de uma cidade no País do Norte, aliada das Terras Férteis, onde gostariam de empregar um mago para ajudar a manter a paz na região; e, como ele sabia que eu tinha estado por aqueles lados  e conhecia vários jovens de talento, consultou-me sobre a possibilidade de enviar um deles para lá. Assim...
- Não precisa dizer. O senhor pensou em mim. – Lear prendeu o fôlego, imagens de castelos rústicos e montanhas nevadas invadindo-lhe a mente. – Mas por que acha que eu poderia...
- Você já vai ver! – disse Anna, entusiasmada. – Finn, leia para ele o que o Thane está pedindo!
- Claro. Meu amigo transcreve aqui – disse o meio-elfo, procurando as frases na carta. – Escute. Estas são as palavras de Herrin, Thane de Leighdale:
Minha dama e eu gostaríamos de empregar um jovem que conhecesse o suficiente de Magia para criar em nossos rivais um senso de temor e respeito, e assim manter nosso povo em segurança. Ele terá de aparecer em ocasiões como a festa da primavera e a da cidade e dar demonstrações de seu poder, coisas simples, mas de aspecto grandioso, que encham os olhos de nossa gente; poderá ter de acompanhar nossos embaixadores e, se necessário, os exércitos, mas esperamos que sua presença desencoraje as ameaças. Ele será alojado no castelo e receberá o tratamento mais digno...
- ... e daí para a frente ele se estende sobre as condições, que são excelentes; o pagamento é o bastante para tornar você um homem rico, se decidir sair após três anos de contrato – disse Finn. – Então, o que parece até agora? Não acha que a posição vem a calhar? Para impressionar o povo de Leighdale com espetáculos e inibir os rivais?
- Eu não... não sei se entendi bem o que eles procuram, mestre – murmurou o rapaz, confuso. – Não são bem espetáculos, parece, e... e eu acho que eles esperam que o mago vá à guerra...
- Não, Lear, eles querem é que não haja guerra – tornou Finn, persuasivo. – Lembra-se de Kieran ter-lhe dito que, numa batalha, adoraria ter você por perto para afugentar o inimigo com seu ilusionismo? E você pensa rápido, é criativo, cheio de recursos. É isso que eles querem, Lear, e não um velho mago rabugento, por mais que tenha experiência.
- O que, aliás, não iriam conseguir – disse placidamente Lara. – Poucas pessoas sairiam das Terras Férteis para viver num lugar como aquele.
- Mas é um bom lugar – rebateu a Mestra de Sagas. – Não é lá muito grande, mesmo para o País do Norte; mas tem um porto, solo fértil, clima ameno a maior parte do ano e, pelo que eu soube, governantes quase sempre justos. Aqui, eu encontrei um livro que narra uma viagem pela região.
Lear pegou o volume retirado da sacola que Anna trouxera consigo, agradeceu, mas o deixou fechado sobre o colo. Agora já fazia uma ideia melhor do que fora proposto e não lhe parecia tão intolerável a ponto de descartá-lo sem refletir, mas, mesmo com os elogios de Finn, não poderia dizer que estava entusiasmado. Passar três anos de sua vida numa remota cidade do Norte – três anos em que seria bem tratado e muito bem pago, sim, mas teria de conviver com costumes estranhos, com o frio, com pessoas que talvez fossem boas, mas que, provavelmente, seriam mais rudes e ignorantes do que aquelas que encontraria em Riverast. E além de tudo, mesmo que pudesse praticar ao longo daqueles anos, como faria para prosseguir na Senda?
- Eu ainda não sei – admitiu, com desânimo. – Suponho que o senhor e os demais me considerem despreparado para trabalhar com os mestres de Riverast, mas, pelo que entendi, há chances de que me indiquem no futuro. Como eu faria para estudar, isto é, quem me orientaria se eu fosse para o Norte como um iniciado do Terceiro Círculo? Não deve haver outros magos em Leighdale.
- É verdade, mas nós poderíamos continuar a ser seus mestres – disse Finn, para surpresa do rapaz. – Continuaríamos a nos corresponder com você – eu, principalmente, mas você vai precisar dos outros também. Kieran e Lara estão dispostos a ajudar e até mesmo Camdell tem meios de alcançá-lo, se necessário. Nós proporemos pesquisas e exercícios, enviaremos livros, daremos toda a orientação de que precisar; você não seria o primeiro a se instruir dessa forma. Por outro lado, a experiência vai amadurecê-lo, o que você também precisa; pois a verdade, meu rapaz, é que o ambiente na Escola de Riverast pode não ser o melhor para você, não como você é agora. Ele favorece os eruditos e os ambiciosos, mas não é tolerante com os artistas. E nós – não apenas eu, todos nós – detestaríamos vê-lo abrir mão disso para ter suas outras qualidades reconhecidas. Entende agora o que fizemos?
Suas mãos apertaram as do aprendiz, transmitindo o mesmo calor que lhe emanava dos olhos. Lear engoliu em seco, ainda hesitante, porém calmo e estranhamente – docemente – emocionado. Então seus mestres não o diminuíam por causa da Arte; queriam que se fortalecesse, não que mudasse. Sabiam que ele valia o esforço.
Imagens distantes, porém muito nítidas, invadiram sua memória, vindas do passado – sua chegada ao Castelo, ainda menino; a acolhida dos artistas da Ala Violeta e a do próprio Finn, tempos depois, elogiando seu talento para a Magia da Forma – e se misturando a outras que só podiam ser vislumbres do futuro. Havia um porto, como Mestra Anna dissera, e um castelo, com uma dama gentil e um senhor de meia-idade que o tratava como a um sobrinho querido; havia guerreiros, artesãos, crianças e camponeses, e todos olhavam para o mago como se olhassem para um Herói que andasse sobre a terra. Não era nada como o que sonhara antes, mas era uma porta que se abria. E quem seria ele se não tentasse improvisar?
- Aquelas pessoas nunca viram um mago, Lear. Pense em como vão amar você. – A voz de Anna veio ao encontro de seus pensamentos. – E a experiência de viver no Norte – outras terras, outras paisagens. Você vai voltar mais seguro e muito mais poderoso.
- Se decidir, vou lhe dar algumas aulas especiais – ajuntou Lara. – Para o que eles querem, você provavelmente vai ter de lançar mão de muitos encantos em espiral... rimas e cantigas sempre ajudam a manter a concentração.
- Obrigado, mestra. Muito obrigada aos três – disse Lear, soltando as mãos de Finn para apertar, ao mesmo tempo, as das duas mulheres. – Ainda não resolvi, mas vou pensar, prometo, e... Puxa. É muita coisa de uma só vez.
- Nós entendemos – sorriu Anna. – Também fiquei assim quando Camdell me ofereceu uma posição aqui. Levei quase uma lua pensando antes de aceitar.
- E quase o tempo de cinco respirações antes de me dizer sim – atalhou uma voz grossa, em tom irônico, por trás das costas de Lear. Este se voltou com um sobressalto, largando as mãos de Anna e Lara como se houvessem lhe dado um choque: tão absorto estivera em suas ideias sobre o futuro que não percebera a aproximação de Mestre Kieran, ainda que ele usasse botas de couro e pisasse forte. Gwyll vinha atrás, com sapatos macios e passo leve, os lábios curvados num sorriso que parecia de triunfo. Algum dos planos que sempre urdia em silêncio tinha dado certo.
- Você ganhou, Finn. O moleque é todo seu – disse Kieran, sentando-se ao lado da esposa. – Você e Sophia têm dois cada um, eu fico só com Vergena, mas até que é bom. Vou ter trabalho preparando a cerimônia em que ela vai se tornar a Mestra das Águias.
- Tarja e Razek vão ser os auxiliares – disse Gwyll, lançando um olhar significativo para Lear. – A partir de hoje, vão observar as restrições do trabalho mágico, assim como a gente.
- E por aqui? – perguntou Kieran, também se dirigindo ao Encanta-Dragões. – Como foram as coisas?
- Bom... Posso dizer que tive muitas surpresas. – Lear escolheu as palavras com cuidado. – Gostei muito de saber que consegui a espada, e fiquei triste por não ir a Riverast. Mas a proposta para trabalhar no País do Norte foi... Puxa. – Balançou a cabeça, sem saber como se explicar. – Eu nunca teria esperado isso. E, como ia dizendo, não sei o que fazer. Vou precisar de um tempo para pensar no assunto.
- É? Bom, em seu lugar eu nem pensaria – replicou o Mestre das Águias. – O que você faria se não aceitasse? Voltaria para Madrath? Ou iria para outra cidade, trabalhar como ajudante de algum daqueles velhos que fazem espetáculos de luzes?
- É mais ou menos o que querem em Leighdale – argumentou Lear. – O senhor deve ter lido a carta. Eles falaram claramente sobre eventos.
- Sim... e também sobre diplomacia, sobre defesa, sobre proteção. É isso que eles querem, garoto. E é uma coisa decente de se fazer com o Dom. – Calou-se por um momento, aproveitando para comer a fatia de pão que estivera cobrindo com mel. – Além disso, você vai endurecer um bocado vivendo naquelas terras – vai crescer de uma vez por todas. Já está mais do que na hora.
Lear baixou o rosto de faces vermelhas e não retrucou. Fez-se um silêncio breve, um tanto incômodo, no qual ecoavam as últimas palavras ditas: Lear devia endurecer, portanto devia passar por privação e sofrimento. A menos que estivesse muito enganado acerca do vocabulário do Carrasco.
“Ao menos não me considera um caso perdido”, pensou o rapaz.
- Bom, então é isso. Lear vai refletir, não há razão para pressa, e será bom que leia a carta com atenção. – Finn voltou a guardá-la no envelope e a estendeu ao aprendiz. – E nesse meio-tempo há muitas coisas para resolvermos. Temos as cinco iniciações do Terceiro Círculo, temos as demais...
- E o auto – lembrou Anna. – Hoje à tarde vai haver ensaio. Espero que você possa vir, Lear.
- Também espero – disse ele, voltando-se para Finn. – Ou o senhor quer marcar alguma coisa?
- Não, hoje à tarde eu e Sophia vamos à cidade para uma visita. Você pode ir para o seu ensaio.
- À tarde? Que pena, eu estava planejando uma volta pelas muralhas, como fiz com Gwyll – disse Kieran, erguendo as sobrancelhas. – Ele não demonstrou muito interesse pelos encantos de defesa, mas você terá de aprendê-los se for para o Norte. Amanhã, então? À sexta hora?
- Tão cedo? Não podíamos...
- Não – disse o Carrasco, em tom enfático. Lear esperou que dissesse o porquê, mas Kieran se limitou a comer outro pedaço de pão com mel, deixando a explicação por conta de um ressabiado Gwyll.
- O encanto se beneficia do nascer ou pôr do sol – disse ele, olhando de soslaio para o mestre. – E eu me interessei sim, mas... hum, o senhor pressionou um pouco.
- É verdade. Precisava acabar com uma dúvida. Mas você vai achar o passeio divertido – disse Kieran, dirigindo-se a Lear.
Uma pausa, e o Sorriso do Mal se desenhou em seus lábios antes que ele completasse:
- Quando se trata de você, eu não duvido de nada.






Parte 6

Epílogo

Nenhum comentário:

Postar um comentário