segunda-feira, 20 de junho de 2016

A Fonte Âmbar : prólogo do livro 3


     -- Mestre, o senhor comeu tão pouco quanto um pássaro -- diz Gurion, olhando para a travessa quase intocada. Isso é o que ele vem repetindo todos os dias ao longo dos últimos anos. Respondo que estou satisfeito e ele não retruca, mas franze o cenho ao sair, e não o faz sem antes se assegurar de que haja bastante lenha em minha lareira. E nisso tem razão, pois é outono, as noites são cada vez mais longas e frias e eu escolhi passá-las sozinho.
     Quando os passos na escada deixam de ser ouvidos, levanto-me e vou até a janela. Dali vejo uma torre da Ala Verde, o jardim de ervas curativas de Sophia e, logo abaixo, meu próprio jardim, com sua fonte, sua estátua e as flores que guardam a memória de Theoddor. Passei a tarde ali com Padraig, meu aprendiz, e meditamos juntos, mas não lhe contei sobre as intuições que venho tendo nos últimos tempos. Também não falei disso aos mestres da Escola. Não quero que eles se aflijam ou, pior, que tomem decisões precipitadas. Por outro lado, sei que virão até mim, mais cedo ou mais tarde, em busca de orientação, e como Mentor desta comunidade é meu dever ajudá-los. E o farei, a partir de agora, ainda que o primeiro passo transcorra em segredo.
     Deixando aberta uma fresta da janela, arrasto minha pesada cadeira de carvalho e a posiciono em frente à lareira. Retiro, então, de meu armário um vidro contendo óleo de cipreste e derramo algumas gotas sobre as chamas. Elas reagem com estalos e se contorcem, suas sombras se alongando sobre as paredes. Respiro fundo, exalando em curtos intervalos, sento-me diante do fogo e me concentro em sua dança, à espera de que me revele o mapa de um provável futuro.
     E, pouco a pouco, ele começa a se desenhar. Não são imagens claras, apenas padrões, linhas e símbolos que um século de Magia me ensinou a ler. A primeira coisa que vejo é uma revoada de asas e bicos selvagens, e compreendo tratar-se de águias guerreiras, com o que não posso evitar uma ponta de angústia. O que vem depois traz visões ainda mais duras -- lanças, flechas, homens marchando e caindo em fileiras cerradas –, mas ao redor desse quadro explodem pequeninas fagulhas, e nelas vejo coisas boas, ainda que apareçam e desapareçam no espaço de um piscar de olhos. Água límpida, espigas de trigo, uma mulher que segura um vaso, inclinando-o para dar de beber a um soldado. Vejo a esperança em seus olhos, o sorriso, depois os lábios que se entreabrem num sussurro, falando, encorajando... buscando trazer de volta...
     As chamas se avivam de repente, engolfando as pequenas cintilações. O brilho súbito me faz perder a concentração, mas a última imagem que vi se fixou em minha mente, e não preciso refletir para saber de quem se trata. É o que eu já esperava, e é tudo parte de um ciclo que se iniciou há vários anos, quando minha amiga Maryan me encaminhou o livro de histórias escritas por sua aprendiz. Ou talvez mesmo antes, quando um rapaz de cabelos longos e vontade inquebrável optou pelo caminho mais claro numa encruzilhada. O que vi no fogo me leva a crer que eles terão de fazer novas escolhas, e no caminho haverá muitas sombras. Quero ajudá-los, mas não posso impedir que as coisas sigam seu fluxo, assim como não posso ter certeza de que tudo dará certo. Só resta confiar.
     A angústia se dissipa à medida que acalmo minha mente, mas o esforço me deixa exausto. Ergo as mãos, contemplando-as à luz do fogo, mãos claras e lisas que não traem minha idade ou meu cansaço. O sangue dos elfos brilhantes em minhas veias mantém meu corpo preservado, pelo que sou grato, pois sei o que é a velhice e o que ela faz aos homens. Fui eu que fechei os olhos de Theoddor, meu grande amigo, que não viveu sequer a metade dos meus anos; fui eu que, em seu leito de morte, segurei a mão trêmula e enrugada de meu avô. E, como todos os mestiços, não sei o que esperar no inverno da minha vida, a não ser pelas visões de um futuro que ainda pode vir a sofrer mudanças.
     Queria que o tempo de espera passasse rápido. Pareço jovem, mas minha alma é velha, e sinto cada vez mais frio. Se ao menos fosse verão...!
     Mas não. As nuvens são cinzentas como chumbo no céu de Vrindavahn. Às vezes eu gostaria de não saber ler os sinais.

2 comentários:

  1. Maravilhoso!! Mal posso esperar para ler! Esse mês com aniversário de marido e dia dos namorados me empobreceu, mas tentarei comprar em julho, já! Ai, que ansiedade!

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