quinta-feira, 6 de outubro de 2016

A Grande Noite das Sagas - Parte 5


       Os fornos já estavam apagados, mas o aposento guardava o calor e o cheiro bom da comida. Ao me aproximar, ouvi o som de vozes animadas, várias delas falando ao mesmo tempo, mas – por estranho que fosse – não parecendo dizer alguma coisa. Era uma linguagem sem sentido, embora melodiosa, e só entendi do que se tratava ao entrar na cozinha e ver quatro pessoas se derretendo diante de um bebê.
      -- Olhe quem chegou, querido! A Mestra Anna! – exclamou Netta, que segurava a criança nos braços. – Ainda não conhece o pequeno Nils, não é? Ele teve que aprender a se sentar para vir ao Castelo, visitar a avó e o avô!
      -- Não conhecia, não, mas o imaginava bem assim, pelo que você e Nils contavam dele. – Sorri, passando um dedo pela bochecha do menino; ele devolveu o sorriso, arrancando de todos um ooooh cheio de ternura.
      -- Ele gostou da senhora, Mestra – disse timidamente a mulher de Holger.
      -- Todas as crianças gostam – declarou Netta, fazendo-me sorrir outra vez. – Precisava ver aqueles três, quando vieram nos chamar para a Noite de Sagas. Disseram que essa tinha que ser a melhor festa de aniversário de todas.
      -- Está sendo – assegurei.
      -- Desculpe não termos ido para lá, Aisleen e eu – disse Netta, referindo-se à nora. – É muita gente, muito barulho, e Nils não está acostumado, precisa de sossego. Quer dizer, o pequeno Nils – acrescentou, olhando para o marido. – Aquele ali, o grande, é um farrista. Quanto mais comida e bebida, mais ele gosta.
       -- E a culpa é sua. Quem mandou me dar aquela poção? – perguntou o cocheiro, rindo com gosto.
       -- Poção? - indaguei, quase sentindo minhas orelhas empinarem. – Isso tem a ver com aquela história do outro dia?
       -- Que história? Não sei de nada – disse Netta, fazendo-se desentendida. Eu ia lembrar o que ela me contara, mas me contive a tempo. Não sabia até que ponto eles queriam falar sobre aquilo. Para minha surpresa, porém, Holger ficou animado, querendo que sua mulher também se inteirasse do episódio.
       -- Acho que nunca lhe contei, Aisleen – disse ele. – Meu pai, antes de ser forte assim, era magro e vivia com dor de barriga. Ele comia muito pouco, e minha mãe achava que quanto mais comesse mais lhe faria bem, principalmente se fosse a comida caprichada que ela faz. Só que ele recusava, por medo de a barriga doer mais ainda...
       -- Você não imagina a agonia que era aquilo! – afirmou Nils.
       -- ... e minha mãe ficava cada vez mais danada. Até que pôs na cabeça que ele não gostava dela, que recusava de propósito a comida, pois assim ela iria desistir e se afastar.
       -- Como assim? Nada disso! Eu era discreta, não dava a entender que estava interessada – protestou Netta, meio rindo.
       -- Pois é! Eu achava que ela só queria ser gentil. – O cocheiro piscou, pousou a mão sobre a da mulher, que afagava lentamente as costas do pequeno Nils. – E é verdade que ela achava que a boa comida iria me curar. Mas eu morria de medo de comer qualquer coisa mais temperada, e em vez de explicar isso a ela só dizia que não, que não queria, que me satisfaria com umas frutas e um pouco de caldo. E assim foi durante uma, duas, três luas...
       -- Ela oferecendo e você recusando? – perguntei, divertida. – E logo Netta, que se ofende quando a gente não repete pelo menos duas vezes?
       -- Isso mesmo, até que ela ficou magoada – disse Nils. – Parou de oferecer comida e nem falava mais comigo. Fiquei surpreso, e também triste, porque a essa altura já tinha começado a gostar dela, mas não sabia o que fazer. E não sei se teríamos ficado nisso se não fosse – adivinhe quem? Nosso patrão, Mestre Theoddor.
       -- Sério? Ele fez vocês se entenderem? – Ergui as sobrancelhas, com surpresa. – Como aconteceu?
       -- Ah, Nils, não conte! Fui uma grande boba nas mãos dele – disse Netta, com as faces vermelhas.
       -- Mas essa é a melhor parte! Veja, Aileen, naquele tempo a Escola de Artes Mágicas ainda não tinha sido fundada – explicou Holger. – O Castelo das Águias era propriedade de Mestre Theoddor, que tinha estudado Ciências da Terra e um pouco de Artes da Cura. Mas todos sabiam que ele era amigo de vários magos, que estavam sempre trocando cartas, ideias...
       -- Às vezes algum deles se hospedava aqui – lembrou Netta. – Havia um quando isso aconteceu. Um elfo, não me lembro do nome. Até achei que Mestre Theoddor tinha falado com ele.
       -- Sobre o quê? Você e Nils?
       -- Sim, mas principalmente sobre o problema de saúde do meu pai – Holger respondeu. -- Mestre Theoddor notou que minha mãe andava triste, e ela contou a história; disse que estava tentando ajudar meu pai, mas ele não se importava nem com ela, nem com o que ela cozinhava com tanto carinho. Vai daí, Mestre Theoddor fez com que ela acreditasse que meu pai precisava tomar uma poção. Uma poção do amor, que ia fazê-lo ver o quanto ela gostava dele...
       -- Nem gostava tanto assim – disse Netta. -- Era só uma quedinha!
       -- ... e a partir daí ele passaria também a apreciar sua comida – completou Holger, com uma risada. – Era tudo que ela queria que meu pai fizesse.
       -- E como ela conseguiu que ele tomasse a poção? – indagou Aisleen, com olhos de assombro. – Ele sabia o que era?
       -- Na verdade, sim – disse Holger. – Mestre Theoddor não perguntou diretamente a meu pai, mas percebeu que ele estava gostando da minha mãe e andava aflito com o que pensava ser a indiferença dela. Então, ele recomendou a minha mãe que disfarçasse; que não dissesse a meu pai que era uma poção, e sim o que de fato era, ou seja, um remédio dado pelo patrão para ajudar com o problema dele. De forma que, mesmo sem saber da trama, ele sabia o que estava tomando, enquanto minha mãe acreditou piamente que fosse uma poção do amor; e quando meu pai melhorou da barriga e começou a comer o que ela oferecia...
       -- Ela achou que a poção tinha funcionado! – exclamei, rindo. – É uma história genial!
       -- Não deveria ter contado. Eu me sinto uma grande tonta – Netta resmungou, mas não parecia ofendida de verdade. – Mestre Theoddor sempre gostou de pregar peças, mas essa foi a maior de todas. E durou uns bons anos! Holger já era crescido quando ele nos contou o que tinha feito!
       -- Mas, no fim, isso acabou sendo bom para nós, não é, minha mulher? Ou pelo menos para mim – riu Nils. -- Faz quase trinta anos que você atura este velho fanfarrão!
       -- E aposto que tem muito mais para contar – falei. – Não vou descansar enquanto não ouvir todas as histórias!
       -- Mas agora seria melhor ouvir as que estão contando na festa, não é, Anna? – disse Kieran, entrando de repente na cozinha. Sua chegada provocou certo impacto, especialmente em Holger e Aileen – não estavam acostumados com ele, e sua fama de Carrasco o precedia --, mas a tensão foi quebrada pelo bebê, que lançou um olhar como que fascinado para meu marido e riu estendendo as mãozinhas.
       -- Ora, vejam, ele gostou do senhor! – exclamou Netta, uma das poucas pessoas no Castelo a não fazer cerimônia com Kieran. – Também riu assim para Mestra Anna. Sinal de que serão bons pais, quando se resolverem... sabiam?
       -- Espero que com meu filho eu seja bom. Com os aprendizes, esses mais novos, quase nunca acerto – resmungou ele. – Amina mal tinha voltado para a mesa quando aqueles três voltaram a cochichar, e fui saber o que era. Freydis e o neto do Comandante até falaram comigo normalmente, mas o outro parecia estar com medo de que eu o mordesse. Com muito custo consegui entender que estava se recusando a contar uma história.
       -- Muita gente acha que você morde. Mas é isso mesmo. – Suspirei, voltando-me para a família de Netta. – Preciso retornar ao salão, mas foi muito bom ver vocês e conhecer o pequeno Nils. E obrigada pela história da poção. Vocês se sairiam bem, narrando todos juntos, se fossem uma família de saltimbancos.
       -- Imagine! Eu só saberia guiar a carroça! – riu Nils, com as bochechas rubras. Fiz um carinho nos cabelos do bebê e deixei a cozinha, com Kieran logo atrás, a mão em meu ombro me impedindo de ir tão rápido quanto gostaria.
       -- Vai insistir com o menino? – ele perguntou.
       -- Com Andi? Não sei. Queria que ele superasse isso, afinal não tem medo quando se trata da harpa ou do alaúde, mas não posso forçá-lo.
       -- É verdade. Ele não tem medo de tocar, assim como você não tem medo de contar histórias – disse Kieran.
O tom foi casual, mas nele havia uma nota dissonante, e eu me detive para olhar bem dentro daqueles olhos estreitos.
      -- O que você quer dizer com isso? – perguntei, incisiva. – Onde está querendo chegar?
      -- Pense um pouco. Vai descobrir – disse ele, no mesmo tom.
Seus dedos roçaram de leve as pontas dos dedos da minha mão esquerda. Na mesma hora, lembrei-me de como ele também fizera isso, três dias antes, ao falarmos pela primeira vez sobre a Noite de Sagas – e então a compreensão iluminou minha mente como um relâmpago.
Ele sabia...!
     -- Tudo bem, eu também tenho receios – falei, puxando a mão que ele segurava e cruzando os braços. – Ainda mais porque sei que não estou pronta.
      -- Urien acha que está – disse Kieran, sem tirar os olhos dos meus.
      -- Ah, então você falou com Urien? – rebati, zangada. – É uma conspiração?
      -- Não, só estou constatando um fato. Urien diz sobre você o mesmo que você diz sobre o menino, e o menino parece sentir o mesmo que você a esse respeito. É curioso, nada mais.
      Fitei-o, pensando numa boa resposta, mas no final achei melhor não dizer nada e segui em frente. Os sons da festa nos alcançaram após alguns passos, culminando numa salva de aplausos dirigidos a Arnak, o Conselheiro meio-humano. Ele deixava o tablado quando Kieran e eu entramos no salão.
      -- Acredita que a história dele não teve mais que umas vinte frases? Foi divertida, mas nem deu gosto – disse Urien, vindo ao nosso encontro com uma harpa sob o braço. – Anna, ninguém se ofereceu para contar a próxima, e muita gente está pedindo que você nos brinde mais uma vez. Pode fazer isso?
      -- Sim, é claro – respondi, mas minha atenção se voltava para a mesa onde estavam as crianças. Orm e Freydis se sentavam cada qual de um lado de Andi e lhe falavam em voz baixa, tentando animá-lo e – provavelmente – convencê-lo a ocupar o tablado; o meio-humano estava cabisbaixo, mas, em meio ao silêncio, notei que olhava de soslaio para Kieran. Seria medo? Ou só aquela espécie de temor respeitoso que a maior parte dos aprendizes sentia por ele no Segundo Círculo?
      -- Espere um pouco, Urien – pedi, e caminhei até a mesa deles. Freydis se calou à minha aproximação, e em seguida foi a vez de Orm, mas eu sentia que a tensão ali era quase palpável.
    -- Ei, Andi. Kieran veio falar com você? – perguntei, tentando aliviar os ânimos. – Espero que não tenha pressionado muito.
     -- Mestre Kieran foi um amor – afirmou Freydis, de cenho franzido. – Ele disse que Andi devia tentar, que ele não era o único a ter medo, que todo mundo em algum momento passa por isso. E nós estamos dizendo o mesmo, só que ainda assim ele não se convence.
      -- Eu me convenci. Quer dizer, eu sei que vocês têm razão – disse o meio-humano. – Mas tem alguma coisa que me impede.
      -- Medo de errar – afirmou Orm.
      -- Medo de todos rirem de você – contrapôs Freydis. – Mas, Andi, isto é uma festa para a Mestra Anna. As pessoas de fora do Castelo são amigas dela. Você vai se sair bem, e, mesmo que erre um pouco, ninguém vai levar a mal. Somos todos aprendizes, não é?
       -- Isso! – exclamei; e então me senti estremecer. Aquelas palavras tinham acendido uma nova luz, tinham-se somado àquilo que eu ouvira pouco antes de Kieran e me aberto os olhos. Eu era uma mestra, sim, ou pelo menos tinha conhecimento bastante para ensinar às crianças do Castelo das Águias. Mas, em outras coisas, também era uma aprendiz. E com receios semelhantes aos de Andi, embora talvez por outras razões.
       E, se minha intuição estivesse certa, acabara de pensar em algo que poderia ajudar a nós dois.

Imagem: ilustração medieval alemã representando Tristão e Isolda

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