quarta-feira, 9 de novembro de 2016

A Grande Noite das Sagas - Parte 7

       

          Muitas luas atrás, tendo finalmente compreendido qual a minha função no Castelo, eu conseguira que os aprendizes do Primeiro Círculo contassem suas próprias histórias. Algumas eram divertidas, outras um pouco tristes; várias, em princípio, pareciam corriqueiras, mas juntos havíamos conseguido encontrar o sentido e resgatar a Magia contida nas pequenas coisas.
         Isso também acontecera com Andi, embora ele houvesse preferido deixar de lado alguns episódios. Eu tinha certeza de que neles estavam as raízes de sua inibição. No entanto, a Noite de Sagas era um momento descontraído, um momento em que ele podia contar qualquer história, mesmo uma que houvesse escutado ou lido num livro, e o desafio se limitava a fazê-lo diante de todos. Era como eu, com o alaúde do qual tirava as primeiras notas, tentando não olhar diretamente para ninguém a não ser Urien e Kieran. Muitas pessoas estavam sorrindo, e várias continuariam a fazê-lo ainda que eu errasse ou hesitasse. Mas o que quer que estivesse nos olhos daqueles dois me falaria de carinho e orgulho verdadeiros.
         Fiz um sinal com a cabeça para Andi. Ele engoliu em seco mais uma vez, respirou fundo, depois assentiu também e se dirigiu ao público, a voz um pouco trêmula de nervosismo – como esperar que fosse diferente? –, mas alta e clara o bastante para que todos pudessem ouvi-lo bem.
         -- Em nome de Woden, Thonarr e Loki, e em nome de Bragi, o Trovador, abram bem seus olhos e ouvidos! Esta é a minha história – começou ele, e tornou a respirar profundamente. – E ela começa num dos momentos mais importantes: quando, no primeiro encontro com nossa nova Mestra de Sagas, ela nos disse que toda vida tem batalhas que precisamos travar e vencer.
Fez uma pausa, controlando a tensão, e então falou como se aquilo o desafogasse:
         -- E Mestre Kieran me fez ver que o maior inimigo está dentro de nós mesmos.
         Um breve murmúrio percorreu os convidados: ninguém imaginava que ele iria citar o Carrasco. O próprio Kieran tinha franzido as sobrancelhas e se inclinado para a frente, como se esperasse o que iria sair dali, ao passo que meus dedos tropeçaram em meio a um acorde. Mas Urien foi o único a dar mostras de haver percebido.
         -- Então, amigas e amigos, eu tenho um nome – o meio-humano prosseguiu, nervoso, mas sem gaguejar. – Andi ap Llyr, é claro, mas também Andi de Kalket, pois é minha cidade, de onde vim aos doze anos, abandonando um aprendizado que começou quando eu era pequeno demais para me lembrar. Era esse nome que eu esperava tornar famoso por meio da arte. E, de fato, quando tinha apenas dez anos de idade, eu era conhecido como o Príncipe das Canções ou o Herdeiro de Hyldor. Alguém terá ouvido falar dele?
         -- Hyldor, o Belo? – As sobrancelhas de Urien se ergueram. – Se é ele mesmo, trata-se... Bem, tratava-se... de um bardo muito famoso.
         -- É verdade. Todos o requisitavam, festas eram marcadas de acordo com o lugar onde ele estaria. Mas não sei o que é feito dele hoje – comentou Mestre Tomas, e os olhares retornaram a Andi: estava claro que ele sabia. – Ouvi dizer até que estava morto.
        -- Não – fez o menino, com um gesto enfático. – Não está morto. Mas suas canções se calaram, como... como...
         -- Como as suas não irão se calar! Continue, Andi! – exclamei, num impulso. Ele me olhou, aflito, mas se lembrou de respirar bem fundo e fechar os olhos, como eu havia lhe ensinado em caso de pânico. Estou com você, querido, pensei, e repeti os poucos acordes que sabia o mais suavemente possível. Acalme-se. Vai lhe fazer muito bem contar essa história.
         E aos poucos – bem aos poucos – a língua do jovem meio-humano começou a destravar. Para recobrar a segurança, ele usou outro dos truques que eu ensinara, voltando atrás na história e contando como tinha sido seu aprendizado com uma mestra de Kalket; como fora à procura de Hyldor, numa visita deste à cidade, e como o grande bardo não lhe dera atenção, até que, por um golpe do acaso, viu-se na contingência de contar com o menino para acompanhá-lo ao longo de uma noite de sagas. Foi Hyldor que deu a Andi os apelidos de Príncipe e Herdeiro das Canções, deixando claro, antes de mais nada, que o Rei era ele próprio e que o menino teria mais chances de se tornar grande ao seguir seus passos. Ele insistiu para se tornar uma espécie de mentor de Andi, embora vivesse noutra cidade, e os dois passaram a trocar correspondência e se encontraram várias vezes ao longo dos três anos seguintes. No entanto, vaidoso como era, Hyldor começou a reclamar da interferência da mestra que o garoto ainda tinha em Kalket, e a se zangar quando ele aceitava convites que considerava menores, e a dar conselhos que, analisados de perto, mostravam que pretendia manter Andi para sempre sob a sua sombra. E como acreditar que seja um bom mestre aquele que teme ser superado pelo aprendiz?
         -- Foi assim que chegamos a um impasse – disse Andi, com a respiração rápida, mas a voz firme. – E, por menos que eu quisesse, os argumentos de meus pais e minha mestra falaram mais alto, portanto eu disse a Hyldor que nosso vínculo estava desfeito. E ele pareceu ter aceitado. Mostrou-se um pouco sentido, mas de um jeito gracioso, de forma que eu não percebi o que existia por trás.
         A essa altura, eu estava tão envolvida com aquilo que mal sabia como continuava a tocar, mas de alguma forma meus dedos continuavam reproduzindo os mesmos acordes, e a generosidade do Grande Espírito me fez lembrar que era o momento de imprimir-lhes um ritmo mais marcado. Andi respirou algumas vezes, seguindo o mesmo compasso, e correu o olhar pela audiência, perguntando-se talvez o que estariam pensando da história. Ou o que pensariam dele, quando finalmente chegasse ao ponto que lhe causava tanta dor.
         -- Então, nosso vínculo se desfez, mas achei que continuássemos amigos. E eu ainda o admirava, como o grande bardo que era – disse Andi, ainda em voz alta, mas em tom reflexivo. – Quando voltou a Kalket, fui ver sua apresentação no Anfiteatro Máximo; ele tinha me escrito dizendo fazer questão de que eu estivesse num lugar de honra. E lá estava eu, com minha mestra, com mais dois alunos de música...
         -- Aí vem – resmungou Urien, balançando a cabeça.
        -- ... quando Hyldor o Belo anunciou uma canção composta para um dos presentes – prosseguiu o menino. – E começou a cantar, jamais dizendo meu nome, mas desde os primeiros versos deixando claro para todos que me conheciam. Era de mim que ele falava... E me chamava de ingrato e Príncipe dos Traidores.
         -- O quê? -- disparou Freydis, sem conseguir se conter. – Traidor, você? Porque não quis mais jogar o joguinho dele?
         -- Que idiota! – Orm cerrou os punhos.
         -- Deixem-no falar! – exclamei, vendo que Andi hesitava. -- Quero muito saber como terminou esse espetáculo no Máximo de Kalket!
         -- Bem, aí é que está – respondeu o menino. -- Não terminou como deveria, ou, pelo menos... não como Hyldor queria. E não foi nada do que todos esperavam. Porque ao ouvir aquilo, mesmo com minha mestra, meus amigos e muitos outros indignados, eu não consegui dizer nem fazer nada. Fiquei sem ação e sem palavras -- só que com muita, muita, muita, muita raiva! Tanta raiva que poderia explodir, e o anfiteatro junto comigo, do mesmo jeito que o Ruivo explodiu aquela chaleira!
         -- Foi acidente! – defendeu-se o rapaz, mas os risos foram breves. Ninguém queria perder o que vinha em seguida.
         -- Então, enquanto ouvia Hyldor cantar com aquela voz linda, tocar a harpa com mestria, mas ao mesmo tempo dizer coisas tão injustas, eu senti minha cabeça doer como nunca antes. – A voz de Andi se firmara, ao contrário das minhas mãos. – Doía e doía e eu tive que segurá-la, e quanto mais doía mais uma ideia tomava conta da minha mente: é que ninguém devia poder cantar uma canção tão mentirosa. Eu não sabia de onde essa ideia tinha saído, mas era o que eu sentia... Era o que eu queria, não sei como, que acontecesse. E de repente...
        -- O quê? – Um coro de vozes, um rumor de corpos se deslocando para a ponta dos bancos e se inclinando sobre as mesas.
         -- De repente, todos no anfiteatro estavam gritando de surpresa, e Hyldor estava segurando a garganta, apavorado – respondeu o menino, fazendo um grande gesto com as mãos. – Correram para socorrê-lo, achando que estivesse sufocado, mas ele respirava muito bem e até podia falar. Só quando tentava cantar a voz falhava. Foi o fim de sua apresentação. Claro que eu também fiquei assustado, e não consegui comer nem dormir direito durante muitos e muitos dias. Tinha certeza de que tinha sido eu... mas, ao mesmo tempo, não fazia ideia de como. E minha raiva passou, e agora eu só sentia pena e muita culpa por ter feito Hyldor ficar sem suas canções.
         -- Ele mereceu! – exclamou o Comandante Owen, dando um tapa na mesa.
         -- Ele é um bardo! – replicou Urien, parecendo afrontado. – Não poder mais cantar... Que destino!
         -- Sim! Ele não devia! Haveria outras maneiras – as vozes se cruzaram e se confundiram entre as mesas, até que Andi conseguisse se fazer ouvir.
         -- Mas depois ele pôde cantar de novo. Aquilo só durou por algum tempo – explicou, apaziguando a maior parte dos ânimos. – Ele ainda não tem coragem de cantar em público, mas conseguiu na presença dos físicos e magos que procurou para ajudá-lo. Mas antes de saber disso eu me senti tão mal que puni a mim mesmo, ainda que sem querer. Eu também não conseguia mais cantar diante de uma plateia. Nem cantar, nem contar histórias, nem mesmo tocar, embora continuasse praticando quando estava sozinho. E, sendo assim, fui obrigado a deixar a escola bárdica. E ninguém mais voltou a me chamar de Príncipe das Canções.
         Um novo murmúrio tomou conta da audiência, mas esse tinha um tom diferente: os lamentos não eram por Hyldor, mas sim pelo menino. Ele causara mal ao bardo, porém mais ainda a si mesmo, e nada disso tinha sido premeditado. Foi o que ele mesmo disse, ao prosseguir com sua história, após um breve intervalo de que precisou para se munir de coragem.
         -- Durante algum tempo, não contei nada a ninguém, mas todos sabem o que acontece quando se tem o Dom da Magia. De um jeito ou de outro ele vem à tona, e eu não conseguia mais usar a arte para expressá-lo. Coisas estranhas começaram a acontecer comigo, em minha casa, nos lugares onde eu estava, e finalmente alguém alertou os magos da cidade, que confirmaram o Dom. Um deles se ofereceu para ser meu mestre, mas outro, sabendo que eu tinha abandonado um aprendizado na música, sugeriu que procurasse a Escola de Artes Mágicas do Mentor Camdell. Talvez aqui eu me desenvolvesse de um jeito melhor, ele disse. Eu relutei, no começo, mas depois decidi tentar, e... o que é que eu posso dizer agora? – acrescentou, com as faces vermelhas, a voz novamente trêmula, mas não de timidez. -- Este lugar... e meus amigos, e Mestra Anna, que está aqui comigo, enfrentando o julgamento de todos... isso me devolveu o... o meu propósito...
         Sua voz diminuiu à medida que a emoção o dominava. Ele parou de falar e se inclinou para a frente, cobrindo o rosto com a mão. Foi quando Freydis correu para o tablado e o abraçou com força. Orm estava com eles no momento seguinte, um garoto maior e mais largo de ombros, abarcando os dois. Outras pessoas se levantaram, o murmúrio crescendo com palavras de elogio e encorajamento, mas a maioria ficou onde estava, esperando para ver onde aquilo iria chegar.
        E, antes que o clímax começasse a se tornar longo demais, segurei minha própria vontade de abraçá-los e de chorar e retomei o controle da história.

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Imagem retirada desta página.

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Parte 1

Parte 2

Parte 3

Parte 4

Parte 5

Parte 6

Epílogo


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