quarta-feira, 22 de março de 2017

Além de Agora : um conto de Cyprien de Pwilrie (Parte 5)

   

       -- É injusto, mas sempre foi assim -- disse Thierry. -- Desde a Reconquista, não temos nenhum direito, a não ser o de estar vivos.
      -- E mesmo esse gostariam de nos tirar -- ajuntou Nayla. -- Por isso, temos que estar preparados para o pior.
      -- É verdade -- disse Cassius. -- Essas coisas acontecem o tempo todo. Ele é seu vizinho, eu sei, e você tem pena... Mas... Bem, acho que não adianta chorar pelo que não tem remédio.
      -- Mas é claro que tem! -- disse Tina, com paixão. -- O remédio é protestar, é lutar por nossos direitos, como queria Haney o Audaz. É isso mesmo! -- acrescentou, vendo que o tecelão abanava a cabeça. -- Se todos tivessem ajudado, aposto que ele teria conseguido devolver o poder ao Povo Alto!
      -- Como? Ele morreu, Tina -- disse Thierry. -- E o seu pai, que nunca fez nada de errado...
      -- Morreu junto com ele, eu sei. -- À luz do fogo, seu rosto parecia moldado em argila. -- E se quer que eu diga, tenho muito orgulho dele, justamente por causa disso. Ele não conseguiu nada, mas morreu lutando. Não se conformou. E, se houvesse mais gente como ele, na certa as coisas não estariam como estão agora.
      -- Aposto que sua mãe não pensa assim -- disse eu, olhando-a nos olhos.
Pega de surpresa, Tina mordeu os lábios, fitando-me como se eu lhe houvesse posto o dedo na ferida. Ela ouvira muitas vezes, com certeza, a mãe se lamentar pela sorte de Elias, pela morte que jamais perdoara a Haney, como se este houvesse feito mais do que atiçar uma chama já acesa. Talvez já tivesse mesmo ouvido o que eu ouvira de Thespio, naquela tarde, a seu próprio respeito. Uma moça excelente, mas rebelde, inconformada como fora seu pai. Já não restava nenhuma dúvida do que, para sua mãe, representava um sonho impossível.
      -- Você não acredita. -- Foram só palavras, mas senti claramente a distância que crescera entre nós. -- Você também vai se contentar, a vida toda, em ficar de braços cruzados.
      -- Eu não disse isso. Disse apenas que sua mãe deve temer por você. E também não pretendo ficar de braços cruzados -- acrescentei, sem refletir. -- Eu não faria uma revolução, ao menos não agora, mas concordo que devemos lutar por nossos direitos. É verdade que ainda não sei como -- confessei, vendo que todos me fitavam --, mas creio honestamente que existem outros meios.
       -- Que meios, Cyprien? Só mesmo pelas armas -- disse Thierry. -- Nós não votamos, não temos representantes no Conselho, não podemos ter propriedades nem entrar nas guildas. O que mais nos resta fazer?
       -- Ora, não sei! Alguma forma de protesto, talvez.
       -- Quem sabe bruxaria -- brincou Aymon. -- Quem sabe se aquela poção que Rowenna quer dar a Édobec vai fazê-lo desaparecer numa nuvem de fumaça.
       -- Que poção? - perguntou Tina, sem dar tempo ao meu desesperado pedido de silêncio.
       Aymon resumiu a história como pôde, salientando, justiça seja feita, que a poção diminuiria a dor, mas não os ferimentos de Édobec; no entanto, para Tina, aquilo foi o suficiente, e não tardei a ouvir de seus lábios aquilo que temera desde o princípio.
       -- Oh, Cyprien, o que está esperando? Vá logo falar com Rowenna! Se ela chamou você, é porque precisa da sua ajuda!
       -- Isso mesmo, Cyprien -- apoiou Nayla.
      -- Espere aí! Como, “isso mesmo”? -- fez Thierry, com olhar incrédulo. -- Está mandando nosso amigo arriscar o pescoço?
      -- Ora, não deve haver perigo. Rowenna sabe o que faz.
      -- E ela nunca preparou uma poção em casos como esse -- lembrou Tina. -- Deve haver uma razão para que esteja ajudando o Édobec.
      -- Sim, mas onde é que o Cyprien entra nisso? -- tornou o músico. -- Ela prepara a poção, e ele a faz chegar até o sujeito? Lá, na frente de toda a cidade?
      -- É um risco muito grande - disse Aymon.
      -- Calma! Não sabemos se é essa a ideia de Rowenna -- disse Cassius, muito razoavelmente. -- Se for, ela deve ter uma forma de proteger também o Cyprien; e se não tiver, bem, ele sempre pode se recusar a cumprir a tarefa, não é verdade?
      Assenti, olhando para Tina. Ela engoliu em seco, fitando-me com uns olhos cheios de ansiedade. Com certeza estava dividida entre o temor por mim e o desejo de que eu fizesse alguma coisa por Édobec. Era mais ou menos como o que eu sentia em relação a mim mesmo.
      -- Vou falar com Rowenna. -- Era o primeiro passo, e era seguro, por isso me senti um pouco melhor. -- Ainda não pude encontrá-la, mas ela deve voltar ainda hoje. Então, vou saber quais são os seus planos. Talvez o que ela tem em mente seja menos arriscado do que parece.
      No fundo, eu não via grande possibilidade de que assim fosse, mas a resposta pareceu contentar a todos, e ao menos garantiu algumas horas de paz até o fim da noite. Uma nova rodada de vinho, acompanhada pelas salsichas, serviu para relaxar a tensão, e logo estávamos rindo e dizendo asneiras como de costume. Aymon ficou ligeiramente bêbado e se pôs a declamar poesia, tendo ao fundo os sons meio incertos da flauta de Thierry. Diante da cena, tive sérias dúvidas sobre o sucesso do encontro na Cidade Baixa, mas, conhecendo bem seus limites, os dois não beberam nem mais uma gota dali para diante. Meia hora depois, pudemos então fazer música de verdade -- e senti minhas esperanças crescerem ao ver a emoção e a ternura contidas no olhar de Tina. Ela parecia se encontrar em cada uma das minhas canções.
      -- E agora é a minha vez -- disse Thierry, pondo a flauta de lado. -- Cyprien fez uma boa tentativa, mas a noite não pode acabar sem que vocês ouçam um verdadeiro cantor.
      -- Verdadeiro e muito modesto -- rebati, passando-lhe o alaúde.
Thierry afinou duas cordas, limpou a garganta e ia começar a cantar quando alguém bateu repentinamente à porta. Esperando ver um dos vizinhos -- e fazendo votos para que não fosse Rowenna --, pedi à pessoa que entrasse, e logo a inesperada visita se revelou como um garoto de doze anos, vizinho de Thierry numa das ruas mais altas. Que eu me lembrasse, ele jamais viera à minha casa, e não pude achar nenhuma razão para que estivesse ali até perceber o olhar que trocou com o músico. Depois de ver aquilo, até um tonto haveria concluído que se tratava de um cúmplice.
      -- Thierry, vieram avisar que o seu tio bebeu um pouco demais, numa daquelas tavernas do porto. Ele está sem conseguir voltar para casa, e a sua mãe pediu que você fosse buscá-lo; mas é melhor levar um amigo, porque parece que ele não está podendo nem levantar.
      -- E essa agora! - exclamou Thierry, fingindo-se contrariado. -- Bem, pessoal, sinto muito, mas tenho que ir. Não posso deixar o velho Olivier numa encrenca como essa.
      -- Não quer que eu vá junto? - perguntou Nayla. -- Não é para levar mais alguém?
      -- Sim, amor, mas é melhor que seja um homem, para ajudar a carregar meu tio. Que tal você, Aymon? Cyprien é o anfitrião, não pode sair, e quanto a Cassius... Bem, a ele eu queria pedir mais uma vez o favor de acompanhar minha garota. Você pode fazer isso, Cassius?
      -- Mas é claro -- murmurou o tecelão.
      -- Não é preciso -- acudiu Nayla. -- Cassius, você mora logo ali adiante, e eu quase às portas da Fortaleza. Não faz sentido você andar tudo aquilo para me levar.
      -- Faz, sim. Você sempre pode topar com alguém indesejável pelo caminho.
      -- É verdade, Nayla -- disse Aymon. -- A gente não pode confiar em todo mundo. Nem mesmo no Labirinto.
      -- Eu posso ir com você -- disse Tina, depois de alguma hesitação. -- Subindo aqui pela rua da esquerda, nós...
      -- Oh, não! Você pode ficar um pouco mais -- apressou-se Nayla a dizer. -- Cassius não deixaria que fôssemos sozinhas; e, quando você for, garanto que Cyprien vai ser gentil o bastante para acompanhá-la.
      -- Isso mesmo, Tina. Ainda é cedo para todos irmos embora -- ajuntou Thierry. -- Além disso, se esperar mais um pouco, pode ser que você encontre Rowenna. Você não está curiosa para saber dos planos?
      -- Ah, sim, é claro que estou -- disse Tina, olhando de soslaio para mim. -- Só não sei é se devo... se nós dois... Bem... Você entende, não entende, Cyprien?
      -- É claro, bela -- respondi, com a voz mais suave que pude. -- E deixo a seu critério ficar ou não... Embora, é claro, eu prefira que você fique, ainda que seja apenas para conversarmos um pouco mais.
      Falei, e sorri candidamente, para não demonstrar o meu verdadeiro desejo. No fundo, o que eu queria era abraçá-la bem apertado e não soltá-la até o dia seguinte.
      Mesmo que não fizéssemos amor, eu queria passar aquela noite com uma menina que gostasse de mim.

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         Parte 6

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