domingo, 11 de junho de 2017

Além de Agora : um conto de Cyprien de Pwilrie (Final)

     

          Tina e eu ficamos no alto da muralha até a segunda hora. Lá embaixo, a praça foi se esvaziando cada vez mais, até que só restassem os desocupados de sempre, além dos funcionários que iam e vinham e dos parentes do prisioneiro. Pouco antes das duas, Rowenna e Sanson chegaram numa carroça, na qual recolheriam Édobec assim que ele fosse solto. Sem mais o que fazer, acompanhei seu trajeto até o patíbulo -- e foi então que, inesperadamente, meus olhos deram com Thierry sentado numa calçada, com uma caneca de vinho ao lado e a cabeça nos braços. Fora ele, afinal, o único de nós a se ferir naquela aventura.
        -- Cyprien!
        Voltei a cabeça, estranhando a voz infantil que gritara meu nome. Instantes depois, uma menina surgiu entre as pedras lá embaixo, e eu franzi o cenho, reconhecendo a sobrinha do cego Omar. Como, dentre todas as pessoas do mundo, ela viera me encontrar ali?
         -- Oi, Tina! Oi, Cyprien! Ei, tio, Rowenna acertou -- gritou, alegremente, para o cego que esperava junto às escadas. -- Ele está mesmo na Fortaleza. Só que Tina está junto, e os dois estão no alto da muralha.
          -- Mas vou descer -- atalhei, vendo que Édobec acabava de ser tirado da roda. Ajudados por Sanson, os homens da família o deitaram na carroça, de bruços, e Rowenna se ajoelhou ao lado, junto com a mulher do prisioneiro. Bem devagar, Sanson fez andar a carroça, e eu não esperei mais do que isso para dar as costas à cena. Agora tinha certeza de que Édobec sobrevivera ao castigo. Era tudo de que precisava para que minha consciência ficasse em paz.
            -- Cyprien. -- Emocionado, Omar avançou para mim, tão logo percebeu que eu saltara da muralha. -- Cyprien, meu rapaz, você foi ótimo! Pelo que ouvi, os guardas nem perceberam que alguém subiu ao patíbulo, e Rowenna disse que o velho recebeu as chibatadas quase sem sentir. Mas o melhor de tudo foi o seu plano -- as sombras, a mensagem passando de boca em boca, e depois toda aquela gente gritando a uma só voz. Ah! Foi formidável! Há quanto tempo o nosso povo não se unia assim!
          -- Bom, não foi só o nosso povo -- lembrei, envergonhado. -- Você deve ter notado que muitos outros nos ajudaram. E, além disso, não foi você que recomendou que ficássemos em silêncio? Não devia estar elogiando quem fez exatamente o contrário.
          -- Ah! Mas vocês me surpreenderam -- disse ele, com um sorriso. -- Eu não imaginava que nossos jovens fossem capazes de uma reação como essa. E, acima de tudo, não imaginava que tivéssemos alguém como você... Alguém para manter vivo o espírito de Zaid.
           -- Ora essa, Omar...! - protestei, sentindo que o sangue me subia às faces.
           -- Ora essa, por quê? Falo sério, meu caro. Você deve conhecer a história de Zaid, o Mestre de Cerimônias do Rei Adouf, que fez os guerreiros se passarem por saltimbancos, e assim salvou suas vidas quando Pwilrie se rendeu ao inimigo. Ele foi nosso primeiro líder após a Reconquista, e dizem que, enquanto viveu, não deixou de repetir que a arte era a melhor das armas ao nosso alcance. E sabe de uma coisa, Cyprien? Eu acho que ele estava certo.
           -- Eu também -- suspirei. -- Mas confesso que, quando estava lá, bem que desejei ter ouvido você e ficado em silêncio.
           -- Ah, não! Não faça isso, nunca. -- Pigarreando, o cego se aprumou, como quando se preparava para contar uma história. -- O silêncio é digno, mas um homem deve reagir, quando tem forças e sabedoria para isso. E agora, ouça com atenção o que vou dizer. Eu sei que Rowenna espera que você se torne um líder. Outros já estão dizendo o mesmo -- e, depois de hoje, ninguém vai me convencer do contrário. No entanto, você é muito novo, e pode ser que não se sinta pronto... Ou você diria que está?
          -- Eu, Omar? É claro que não.
          -- Eu sabia -- sorriu ele, de um jeito tranqüilo. -- Eu sinto o impulso nos seus gestos, percebo a impaciência na sua voz. E eu sei que mais cedo ou mais tarde você vai partir, como o herói daquela história que deixei inacabada. Mas vai voltar, Cyprien de Pwilrie -- acrescentou, e o que disse a seguir calou fundo em minha alma. -- Onde quer que a vida o leve, um dia você vai ouvir o chamado, por isso não se angustie nem tenha pressa. Você vai saber usar suas armas quando chegar a hora. E, assim como você, aquela linda moça – acrescentou, apontando na direção exata em que Tina se encontrava. – Ela também ainda há de fazer muito pelo Povo Alto. E se me permite um último conselho, Cyprien: ame as mulheres que passarem por sua vida, seja o homem e o companheiro que elas merecem, mas nunca, nunca se esqueça da força e da coragem que elas têm!
          -- Não vou me esquecer -- respondi, esforçando-me para não chorar. Eu estivera tão confuso, e ele tornara as coisas tão claras em questão de momentos. A mais simples palavra é ouro na boca de um contador de histórias. Talvez fosse essa a arte que meu coração ansiava por aprender.
          -- Cuide-se -- disse Omar, depois de alguns instantes. Batendo-me no ombro, ele chamou pela sobrinha, e os dois começaram a descer as escadas enquanto eu permanecia ali, de pé, olhando para as pedras chatas que marcam as sepulturas.
           Não há nenhuma inscrição, mas todos sabemos onde estão os mortos ilustres, bem como as pessoas de nossa família. Assim, a cada lua nova, desde que esteja na cidade, venho trazer flores ao túmulo de minha mãe. Ela repousa à sombra de um resto de muralha, ali mesmo onde viera à procura de Rowenna, quatro anos antes, ao sentir as dores que anunciavam minha chegada ao mundo. As ruínas do passado, o lugar dos mortos, o chão do meu nascimento. Não podia ser por acaso que eu me sentia tão ligado ao destino do Povo Alto. E talvez, quem sabe, um dia eu viesse a ser o líder previsto por Rowenna -- mas, ainda que não, o que fizera hoje devia ter bastado para deixar os antepassados felizes. De que outra forma, no auge do verão, os céus teriam me mandado aquela brisa fresca?
            Respirei fundo, olhando para o Labirinto que se estendia a meus pés. O palácio fora arrasado, e os heróis estavam mortos, mas eu tinha muito a fazer naquele dia especial. Na casa de Ariela, o almoço devia estar esperando por mim, e os amigos certamente estavam loucos para me felicitar. Pippo olharia para mim com aquele ar de irmão mais velho, Sanson me apertaria até trincar as costelas, enquanto, como todos os bons mestres, Thespio e Mandol não se caberiam de orgulho do antigo aprendiz. Aymon demonstraria mais admiração do que se me visse jogar com uma dúzia de bolas. E com Rowenna, quando ela chegasse da casa de Édobec, eu trocaria aquele olhar que era só nosso, que não precisava de palavras para reafirmar nossa cumplicidade. Tudo seria perfeito, eu passaria a tarde sendo admirado e cumprimentado como um herói...
          -- Olá! Ainda neste mundo? – chamou Tina, em tom divertido.
          No instante seguinte, eu havia esquecido todas as minhas fumaças de grandeza e me voltado para ela. Estava de pé sobre a muralha, o cabelo solto de novo, esvoaçando ao vento, os olhos brilhando de orgulho pelo que havíamos realizado. Estendi a mão, dando-lhe apoio para que descesse, e então nos abraçamos com força. Não como namorados, não apenas como o homem e a mulher que mal começávamos a ser, mas como dois guerreiros unidos pela mesma causa.
           E esse abraço se tornou algo que nunca poderiam nos tirar: o instante precioso, para sempre acalentado, que nos daria força ao longo de toda a vida, de todas as lutas, de todas as noites de frio e escuridão que nos esperavam antes da vitória.

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Bom, Pessoas Queridas... Chegamos ao fim da novela. Muito obrigada a quem acompanhou (ou pelo menos leu um pedacinho!). Espero que vocês tenham curtido, de coração.

Este post é ilustrado com uma foto do Castelo dos Mouros em Sintra, Portugal.

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Parte 1
Parte 18

Conheça O Jogo do Equilíbrio, novela em que Cyprien já está em outra fase da vida.

Saiba mais sobre o personagem clicando aqui.


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