quinta-feira, 22 de setembro de 2016

A Grande Noite das Sagas - Parte 3




      -- Nervosa? – perguntou Urien, com o jeito malicioso de sempre, mas querendo demonstrar que me apoiava. – Não fique. Todo mundo vai adorar a noite de hoje.
      -- Tomara. Já era para mais gente haver chegado – respondi, tamborilando com os dedos na mesa. – Quer dizer, os aprendizes, quase todos, estão aqui, mas eu queria que os outros também viessem. Pelo menos parte deles.
      -- Os outros, em grande parte, são artesãos e empregados do Castelo e estavam ocupados até meia hora atrás. Não vão se apresentar no salão com roupas de trabalho. Dê tempo a eles para se lavarem e vestirem alguma coisa melhor – disse o professor de Música.
      Assenti, pois suas palavras faziam sentido, e percorri mais uma vez o salão com os olhos. Estava decorado à moda do inverno, com pinhas e guirlandas de folhas, além de estandartes que representavam o brasão de armas de Vrindavahn, o da família de Theoddor e as sete cores da Escola de Artes Mágicas. A disposição das mesas fora mudada de forma que todos os olhares pudessem convergir para um espaço no centro, e ali havia um tablado de madeira trazido dos galpões da Ala Violeta. Era onde as histórias seriam contadas naquela noite. E, se tudo corresse bem, seria ocupado por várias pessoas além de mim.
      -- Duvido que muita gente tenha coragem de narrar alguma coisa. – Às vezes o mestre de Música também parecia ler meus pensamentos. – Você precisa ter em mente que os empregados do Castelo são pessoas humildes. Ficam envergonhados diante de nós. E os aprendizes, de quem talvez você consiga bons resultados nas aulas, podem não ser tão desembaraçados na frente de outros mestres e de colegas mais adiantados. Quem talvez se anime é gente como aquele velhote ali – ergueu a voz --, que está entrando em cena, com seu cabelo ruivo puxado por cima da careca... Veja só!
     -- O que é melhor, ser meio careca ou ter uma barba de bode como a sua? – Tomas, o mestre de fantoches da Ala Violeta, devolveu o insulto bem-humorado e avançou em meio às risadas dos aprendizes. – E ainda me chama de velhote, como se fosse um jovenzinho!
      -- Pois você vai ver que o barba de bode tem mais fôlego que todos esses moleques juntos! – riu Urien, enquanto apertavam as mãos. Por minha vez, abracei Flora, nora de Tomas e uma de minhas melhores amigas em Vrindavahn, e seu marido, Aryan, um rapaz arruivado, de temperamento tranquilo. Estava feliz por eles terem vindo, e fiquei mais ainda quando vi outros artistas da Ala Violeta entrando no salão e se dirigindo a Freydis, que estava junto à entrada servindo de mestra de cerimônias.
      -- Por aqui, podem se acomodar. Não há lugares marcados – disse ela, mas, como era de se esperar, eles se sentaram todos juntos numa mesa ainda vazia. Ida, a postos, ofereceu-lhes pão e cerveja aquecida, fazendo-me pensar que talvez fosse preciso dar um pulo à cozinha para trazer Netta e Lori. Não agora, é claro, pois o jantar seria servido antes de começarem as sagas, e eu tinha certeza de que Netta não deixaria o comando sem ter a certeza de que tudo estava correndo bem. Mas, depois disso, alguma coisa me levava a fazer questão de que ela estivesse ali conosco.
      -- Mãezinha! – A voz de Freydis, evocando o modo de falar do Oeste, me despertou daquela cisma. Seus pais, Thorold e Tatyana, acabavam de entrar no salão, um homenzarrão de barba loura de mãos dadas com uma mulher baixinha. Atrás deles vinham os imprescindíveis Bran e Joot. E quem era o segundo grupo, pelo menos dez pessoas lideradas pelo que parecia um anão encapuzado?
      -- Salve, salve! – O capuz foi retirado, deixando ver não um anão, mas o rosto sorridente e cheio de rugas de Mestre Angus, o comerciante que partilhara nossa aventura na Ilha dos Ossos. – Então este é o famoso Castelo das Águias! Pensei que minha vida chegaria ao fim sem ter estado aqui!
      -- Todos os cidadãos de Vrindavahn podem visitar o Castelo, esse é um acordo firmado entre a Escola de Artes Mágicas e o Conselho – disse Arnak, atrás dele. – Mas uma noite como esta não acontece sempre, não é mesmo, Anna? Obrigado pelo convite!
      -- Não há de quê – respondi, um pouco aturdida. Não fazia ideia de quem havia convidado o Conselheiro e sua família, inclusive as duas filhas pequenas, que olhavam maravilhadas para as paredes do salão. Dentro de alguns instantes começariam a explorá-lo. E não estariam sozinhas, pois alguns artesãos e – finalmente – quatro ou cinco empregados do Castelo estavam chegando acompanhados das famílias, ao passo que Naheen, nosso mestre de Ciências do Céu, apareceu todo encapotado, vindo da cidade onde fora buscar a esposa, os filhos e dois sobrinhos.
      -- Anna, minha querida, muito obrigada por nos convidar. Não fizemos nossa reunião habitual na noite do crescente, porque choveu muito, o jardim ficou encharcado e desconfortável. Mas esta é uma ótima oportunidade para estarmos juntos – disse Amina, mulher de Naheen, de rosto suave e cabelos sempre envoltos por um lenço de seda. Suas filhas adultas e um dos sobrinhos, que era casado com a mais velha, se sentaram com a família de Tomas, enquanto Hakim, o filho mais novo, se misturava aos aprendizes junto com o outro primo. Dali também era capaz de sair alguma história, acompanhada ao fundo por alaúde ou até cantada em tom dolente como era comum no Leste de Athelgard.
      -- Bom, se você estava com medo de as pessoas não virem, acho que já pode relaxar – disse Urien, enquanto mais e mais lugares eram ocupados. – Eu não sabia que tinha convidado toda essa gente de fora, mas...
      -- Não convidei! Foi coisa dos meninos. – Balancei a cabeça, cada vez mais incrédula ao presenciar a entrada do Preste Drusius, líder do Conselho de Vrindavahn, e mais três religiosos do templo de Bragi. – E isso deve ter sido coisa do Padraig. Ah, não falei? A mãe dele veio junto!
      -- Isso quer dizer que ela fechou sua estalagem por uma noite. E A Espada e o Lírio não fecha nunca! – declarou Urien. -- Viu só o prestígio que você tem?
       A essa altura, eu só podia concordar, porque havia mais gente no salão do que eu tinha previsto. Algumas pessoas seriam de se esperar, pois eram ligadas aos mestres – a família de Naheen, a esposa de Algias, o namorado de Rydel, que tinha uma oficina de marchetaria no bairro élfico --, mas eu não fazia ideia do porquê de terem chamado certas outras. O que os Prestes, por exemplo, estavam fazendo ali? E o Conselheiro Arnak, e Mestre Angus?
      -- Os Prestes não fomos nós que chamamos. É que Freydis comentou sobre a noite de hoje com o Padraig e contou que ia convidar os pais. Com isso, ele decidiu chamar também a mãe dele, e ela achou que era uma espécie de festa oficial do Castelo, com as pessoas importantes – explicou Orm, que acabara de acomodar numa mesa não apenas o avô, Comandante Owen, mas também a avó, os pais e dois primos. – E, para ela, as pessoas mais importantes do mundo são os Prestes.
      -- Pelo menos só chamaram os Conselheiros simpáticos. Não queria olhar para a cara azeda daquele Colum – resmungou Urien, e em seguida revirou os olhos. – E, por falar em azedume, prepare-se! Aí vem seu marido, com aquele belo sorriso que Deus lhe deu.
      -- Mas ele está sorrindo mesmo – disse eu, perguntando-me até que ponto isso também era estranho. Kieran já havia se posicionado a favor da noite de sagas, mas eu achava que não iria gostar de ver o salão tão cheio e imerso em balbúrdia. Aquilo era prenúncio de resmungos e cara fechada. Em vez disso, no entanto, ele estava andando entre as mesas, cumprimentando os Conselheiros e outras pessoas da cidade. Parou até para falar com alguns aprendizes antes de vir para a mesa onde estava a maior parte dos mestres do Castelo.
      -- Estamos lotados – disse, sentando-se à minha direita e se servindo da cerveja que Ida trouxera em uma jarra. – Se isso aqui fosse uma taverna, ficaríamos ricos.
      -- Mas o que foi que aconteceu? Por que tanta gente de Vrindavahn? – sussurrei, para que só os mais próximos ouvissem. -- Isso era para ser entre nós, com uns poucos convidados de fora. Foi o que eu disse a Camdell, quando lhe falei sobre os meus planos.
      -- Não se preocupe comigo, Anna – sorriu o Mentor. Ele chegara pouco antes dos Prestes e se sentara duas cadeiras à minha esquerda, entre Lara e Thalia, que ostentavam o mesmo ar tranquilo. Franzi a testa, sentindo uma espécie de desconfiança em relação a tudo aquilo, e foi quando Finn deu três pancadas fortes em sua taça.
      -- Caros amigos e aprendizes, peço sua atenção! – A voz se sobrepôs ao soar do bronze. – É com prazer que os recebemos aqui no Castelo das Águias. A ideia do encontro foi da Mestra Anna de Bryke, a qual, como muitos já sabem, fará vinte e um anos dentro de um quarto de lua. Ela não mencionou esse fato ao sugerir uma noite de sagas, mas nós pensamos: que melhor maneira de comemorar esse aniversário?
      -- Ah, então era isso? – exclamei, sentindo minhas faces esquentarem. Urien, à minha esquerda, soltou uma risadinha, mas Kieran se limitou a afagar minha mão, com uma expressão que não deixava dúvidas sobre ele estar a par daquela trama. As pessoas no salão também me olhavam com ar cúmplice, e eu não tive o que fazer a não ser agradecer a todos. Ainda meio envergonhada, mas feliz. E envaidecida, embora de um jeito bom. O que mais poderia sentir diante de tanto carinho?
      -- Então, amigos, vamos abrir esta noite com um brinde a Anna de Bryke. – Finn ergueu a taça, e os convidados o imitaram. – Estamos felizes por ela estar conosco, por ter retornado sã e salva de tantas aventuras temerárias...
      -- Foi uma só – murmurei, mas ele não ouviu.
      -- ... e por trazer tantas histórias, tanta alegria, tanta vida ao nosso Castelo. Um viva a Anna de Bryke, e que comece o jantar!
      -- VIVA! – exclamaram todos, e o coro desembocou em risadas alegres. Sob o comando de Ida, as jarras e travessas começaram a circular, e assim teve início o que ficaria conhecido como a Grande Noite das Sagas.
      E muito haveria de acontecer antes que terminasse.

Continua...

Parte 1

Parte 2

Parte 4

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