quarta-feira, 26 de abril de 2017

Além de Agora : um conto de Cyprien de Pwilrie (Parte 11)



Se, por um lado, não havia nada de novo com Mandol e com meus amigos -- isso sem falar na eterna tagarelice das vizinhas --, por outro eu estava prestes a comprovar que o mesmo não acontecera no que dizia respeito a Tina. Eu esperava encontrá-la ressentida, mas pensava que não tardaríamos a fazer as pazes – e fiquei sem ação quando, chegando à sua casa, soube que ela seguira sem mim para a Cidade Baixa.
-- E Tina disse ainda que, se você decidisse ir ver a execução, devia fazer o favor de não falar com ela -- completou a mãe, com pesar. -- Eu havia notado que alguma coisa não estava bem entre vocês.
-- Bom, nós... Tivemos uma discussão -- disse eu, respirando fundo. -- Não foi muito sério, nem mesmo se tratava de nós dois, por isso pensei que ela me esperaria para conversarmos.
-- Talvez não quisesse perder o açoitamento -- disse a prima de Tina, que ia e vinha ao redor do tacho de sabão. -- Se esperasse você, na certa iam ficar falando durante horas. Ou será que eu não sei como são os namorados?
-- É verdade, Cyprien. Tina também pode estar nervosa por causa disso -- lembrou Renée. -- Desde ontem à tarde, ela não falava em outra coisa a não ser no velho. Aposto que ainda chegou a aborrecer você com essa mesma história.
-- Tina não me aborrece -- disse eu, e ganhei um sorriso por isso. -- Mas é verdade que ela falou um bocado sobre o assunto.
-- Espero que não fale lá na praça -- suspirou a prima.
-- É mesmo. -- Preocupada, Renée se voltou para mim, pousou a mão úmida e maternal sobre o meu braço. -- Talvez seja o caso de você ir atrás dela, Cyprien. Sei que ela disse aquelas asneiras, mas... Bem... Tenho medo de que arranje alguma confusão na praça, se estiver sozinha.
-- Não creio, Renée. Mas vou assim mesmo -- prometi. - Fique tranqüila. Eu não vou deixar que Tina se exponha diante dos soldados.
-- Ah! Eu sabia que podia contar com você -- disse a mulher, em tom agradecido. -- Se todos os rapazes fossem desse jeito! Não sei como Tina tem coragem de chamá-lo de egoísta.
-- A sua filha é que é uma tonta -- sentenciou a prima, mexendo o sabão.
Fingindo achar graça, concordei e me afastei o mais rápido que pude, para que elas não vissem o quanto começava a me sentir inquieto. Era verdade que Tina estava zangada comigo -- talvez até mesmo disposta a terminar com o que havia entre nós --, mas eu deixara claro que ia à sua casa, e não esperava que pudesse sair daquele jeito. Não era do seu feitio fugir de uma discussão. Quanto a perder o açoitamento, não eram nem nove horas, cedo demais para que um simples espectador tivesse que se pôr a caminho – e, pensando nisso, tive de engolir em seco, porque imediatamente me ocorreu que talvez Tina quisesse ser mais que um simples espectador.
Apressei o passo em direção à Cidade Baixa. Há vários caminhos possíveis, e eu tomei o mais curto, deixando, com isso, de passar em casa e pegar as moedas que devia trocar com Hubert. Para o Inferno o dinheiro, Cyprien. Trate de encontrar logo a sua menina.
Ela não estava em nenhum ponto visível da Praça do Conselho. Àquela hora, o público ainda não era muito grande, mas as pessoas estavam chegando de todos os lados, aglomerando-se perto do patíbulo para ver melhor. Alguns preferiam ir para o alto dos sobrados, embora ninguém se arriscasse no velho conjunto à esquerda, que fora abandonado há muitos anos e estava quase em ruínas. Às vezes um mendigo, ou mesmo um viajante pobre, descobria que podia dormir ali, e ocupava a construção por vários dias antes que os guardas o pusessem para fora. Em geral esses hóspedes tinham todo interesse em ser discretos, mas alguns não se preocupavam em ocultar sua presença, e esse parecia ser exatamente o caso dos que estavam ali naquela manhã. Como se estivessem em casa, eles haviam estendido uma corda de um ponto a outro da sacada, e três lençóis pendiam dela como bandeiras encardidas. Um pé de bota, rasgado e sujo, fora largado mais abaixo, e havia cacos de cerâmica diante da porta. Provavelmente alguém chegara bêbado e deixara cair a bilha ou o jarro em que trazia vinho. Eu poderia gastar toda a manhã imaginando uma história para essa pessoa.
Corri rapidamente meu olhar pelos demais sobrados. Em alguns deles, havia rapazes e garotos do Labirinto, mas nada de mulheres e, o mais importante, nada de Tina. Assim, eu precisaria procurar na praça, em algum lugar no meio daquela multidão que não cessava de crescer. Subi numa carroça para tentar um último golpe de vista. Nada. E, quando desci, já havia se tornado impossível ver qualquer coisa além do patíbulo.
-- Um bocado de gente, não, Cyprien? -- disse alguém, inesperadamente, às minhas costas. Voltando-me, dei com o nariz no ombro do sujeito; ele soltou uma risada e me descadeirou com um tapinha amistoso. Sanson está desperdiçando seus melhores talentos ao insistir em trabalhar como pintor. Ele ganharia muito mais se fizesse exibições de força.
-- Uma vergonha, o que aconteceu com esse velho -- tornou ele, enquanto eu massageava meu ombro dolorido. -- Não tem que ver, pegaram-no para bode expiatório, para fazer o que gostariam de fazer com todos nós. Nem sei como ainda nos deixam ficar no Labirinto. Com todo esse ódio, eu não estranharia se algum dia fizessem uma lei para nos expulsar das nossas casas.
-- Nem me fale! Íamos ficar como aqueles lá -- disse eu, mostrando a construção abandonada. Uma sombra de mulher se projetou naquele exato momento sobre os lençóis. Pelo jeito, eu teria que mudar alguns detalhes na história que criara para o bêbado.
-- Sanson, você tem ideia de quem está no sobrado agora?
-- No sobrado? Bom, eu pensava que já não havia ninguém -- respondeu o pintor. -- O último forasteiro, um velhote com um ar até muito respeitável, saiu corrido de Pwilrie, porque arranjou briga com um oficial de justiça. Coitado! Nem pôde voltar para recolher os trastes.
-- Ah, então são dele aqueles lençóis?
-- Acho que sim - confirmou Sanson. -- E não sei como ninguém os pegou ainda. Talvez eu faça isso depois do açoitamento. São de pano ordinário, mas dá para usá-los quando estiver experimentando tintas. E depois posso vendê-los à fábrica de papel. Eles compram qualquer trapo, por mais gasto e sujo que esteja.
-- Mas parece que agora os trapos têm dona -- disse eu, apontando a mulher, que passara mais uma vez diante da luz. A sombra não era nítida, mas era claramente feminina, com longos cabelos soltos e contornos arredondados. Vi o olhar de Sanson se demorar sobre o lugar onde ela estivera. Na certa estava pensando em como seria o rosto daquela desconhecida.
-- Lá vem o seu amigo Pippo -- disse ele, depois de alguns momentos. Abrindo caminho -- a multidão era grande, mas não compacta --, o músico se juntou a nós, e ali ficamos por mais algum tempo, sem que eu tivesse o menor vislumbre de Tina.

Onde poderia ela ter ido parar?

*****

Parte 1
Parte 10
Parte 12

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