domingo, 27 de novembro de 2016

A Grande Noite das Sagas - Epílogo


      -- Andi, você fez uma coisa fabulosa! – exclamei, parando de tocar e batendo palmas com entusiasmo; a audiência foi atrás, e os aplausos quebraram a catarse, de forma que o garoto se desgrudou dos amigos e me olhou com o rosto lavado de lágrimas. – Desde nossos primeiros encontros, quando quase era preciso obrigá-lo a falar, até esta noite, na qual contou uma história que mexeu desse jeito com todos... Como você mudou!
       -- Graças a você – disse ele, com a voz embargada. – E a meus amigos, e aos outros mestres, e à Escola de Artes Mágicas. E Mestre Kieran, o senhor estava certo – acrescentou, dirigindo-se a meu marido, que ostentava seu famoso sorriso torto. – Eu tinha mesmo que enfrentar esses demônios e dizer a eles que sou mais forte. E agora digo a vocês o que vou fazer: amanhã cedo vou escrever à minha família pedindo que venham me buscar, não para voltar a Kalket, mas para fazer uma visita a Hyldor em seu solar nas montanhas. Vou contar a ele o que aconteceu e encorajá-lo a cantar diante de um público. Posso até estar no palco ou na arena com ele, como Mestra Anna estava aqui comigo. E se ele não quiser, se não acreditar em si mesmo, não vou me sentir culpado nem deixar que isso atrapalhe mais a minha vida. Vou voltar a ser o Príncipe, e, quem sabe? Talvez um dia até o Rei das Canções.
      -- Muito bem, garoto! – exclamou Urien, e várias taças e vivas se ergueram na audiência. Era o momento de entrar mais uma vez em cena, mas Finn tomou a iniciativa, agradecendo pelas ótimas histórias que Andi e eu tínhamos contado juntos. Também pela presença de todos, uma vez que a noite ia avançada, e muitos já mostravam disposição de se recolher ou partir. Gurion, o intendente, entrou então em cena, oferecendo hospedagem para os visitantes que preferissem pernoitar no Castelo, e as pessoas estavam começando a se mexer quando, inesperadamente, Camdell bateu com uma colher numa taça de bronze, solicitando a atenção de todos.
      -- Caros amigos, queridos aprendizes, não posso deixar que se despeçam sem dizer algumas palavras, ainda mais depois do que presenciamos esta noite – disse ele, visivelmente emocionado. – Em nossa Escola, a Magia costuma despertar através da Arte, mas hoje vimos que o inverso também acontece: que a Magia trouxe de volta a voz e as canções que haviam se calado no coração de um menino. Não sei se Andi continuará conosco ou se voltará para a escola bárdica, mas uma coisa eu sei e digo com segurança: não apenas o seu propósito, mas o meu e o desta escola, foram reafirmados nesta Grande Noite de Sagas. Pela Magia e pela Arte!
      -- Pela Magia e pela Arte! – bradaram todos, erguendo as mãos e as taças; o estrondo de vozes que brindavam logo foi emendado pelas primeiras estrofes da Canção do Mago Violeta, uma espécie de hino da Escola de Artes Mágicas, e a noite terminou em meio a um coro de pessoas que cantavam abraçadas, tocadas pela emoção das histórias e, em alguns casos, pela boa cerveja e vinho que não tinham deixado de correr.
        Mais tarde, depois de eu ter abraçado cada um dos presentes e de ter ouvido todo tipo de comentário sobre os meus dotes como alaudista -- quase todos piedosos, felizmente –, Kieran e eu voltamos ao aconchego da nossa torre, onde acendemos a lareira e nos abraçamos também. Eu queria fazê-lo admitir que tinha articulado tudo aquilo com Urien – que eles tinham me feito de boba, como Theoddor fizera com Netta, décadas atrás --, mas sabia de antemão que Andi não podia fazer parte de uma trama como aquela, exceto talvez de forma involuntária, como no caso de Hyldor o Belo. Tanta emoção e tanta luta contra os próprios receios não podiam ter sido calculadas. Kieran, porém, continuou a afirmar que não houvera qualquer entendimento com o Mestre de Música para aquela noite; ele apenas lhe revelara saber que eu estava tendo aulas de alaúde, já fazia um bom tempo, e Urien dissera que eu estava indo bem e que gostaria de me ver tocar diante de alguém além dele mesmo.
      -- Não pensamos numa plateia tão grande, nem falamos sobre isso hoje, mas a situação de Andi veio a calhar. Foi importante você estar lá com ele – disse Kieran.
      -- Você também – repliquei. – Ele gostou da ideia de lutar contra os demônios interiores. E teve forças para isso, mesmo sendo tímido.
      -- Sim. Eu me surpreendi com a história dele. Já tinha percebido que o garoto tem uma vontade muito forte, mas o que ele fez em Kalket mostra que o Dom é bem mais poderoso do que pensava. Talvez eu devesse... Mas não. – Sacudiu a cabeça, afastando seus próprios desejos. – Se ele precisa falar com o tal Hyldor para ir em frente, que fale, e se precisa voltar para a escola bárdica, que volte. Esse é mesmo o caminho que deve seguir. Só não duvido de que a Magia vá alcançá-lo mais à frente, como aconteceu com Lara.
-- E comigo – falei; ele sorriu, supondo que eu estivesse brincando, mas o encarei tranquilamente e com olhos sérios. – O que Camdell disse no fim é uma verdade para mim também. Aqui reafirmo todos os dias o meu propósito, que é partilhar histórias, e vejo a Magia acontecer através delas. E hoje estou especialmente feliz, pois muita gente esteve aqui e vai levar consigo um pouco dessa Magia para suas vidas.
      -- É verdade – disse ele, com um suspiro. – E ouvir isso de você me faz supor que esta Noite de Sagas não será a última. Na verdade, me arrisco a dizer que teremos outra em breve. Estarei errado?
      -- Talvez na próxima lua – respondi, e franzi a testa. – Mas eu pensei que você tinha parado de ler meus pensamentos.
      -- E eu parei – Kieran garantiu, afastando uma mecha de cabelo que me caíra no rosto. O fogo tremulou, realçando o brilho em seus olhos, e eu fechei os meus enquanto ele me abraçava, devagar, seus lábios roçando minha orelha para sussurrar as palavras que não dissera a mais ninguém, em toda a sua vida.
      E elas terminaram de tecer o encanto que me envolvera e transformara durante aquela Noite de Sagas.

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